Jorge Paiva: “O meu cão guia é uma extensão de mim”

Entrevista publicada na edição de abril da revista Mais Guimarães.

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Jorge Paiva e Zangão estão unidos, há seis anos, por um laço ainda mais forte do que qualquer outro animal de estimação. Há amor, há carinho e cumplicidade, mas, acima de tudo, há confiança. Invisual desde 2015, Jorge Paiva foi um dos portugueses que teve a sorte de lhe ver atribuído um cão-guia. Admitindo que os primeiros tempos não foram fáceis, o gestor financeiro de Santa Maria da Feira já coleciona muitos momentos com o seu companheiro de quatro patas. Destacam-se, entre eles, uma viagem a Angola, em novembro passado, e um roteiro pela Europa.

No âmbito do Dia Mundial do Cão-Guia, celebrado a 26 de abril, a Mais Guimarães foi conhecer esta história de superação.

© Cláudia Crespo / Mais Guimarães

Ficou completamente cego aos 47 anos, em 2015. Como é que foi lidar com essa nova realidade? A perda total de visão era um diagnóstico que já tinha…

Por muito que saibamos que isto pode vir a acontecer, lidar com a situação na prática é completamente diferente… Desde que nasci sempre tive baixa visão, mas tinha aquilo que se chama de “visão útil”. Ou seja, a visão que tinha era suficiente para andar na rua de forma autónoma. Eu tenho glaucoma crónico congénito e a perca de visão que dele advém é sempre irrecuperável. O tratamento que se faz é sempre preventivo para tentar travar o processo de degradação da visão. Foi isso que fui fazendo, com sucesso, durante cerca de 40 anos.

Durante os vários tratamentos e intervenções, estive sempre a trabalhar muito intensamente na área da fiscalidade e consultoria financeira, e acho que isso me ajudou bastante. Se por um lado estava a viver essa realidade difícil, por outro lado tinha essa necessidade e obrigação de continuar a trabalhar, até porque tinha compromissos com os meus colaboradores.

Em 2015, comecei a criar a convicção de que aquilo era uma situação irreversível e comecei a procurar soluções para recuperar novamente a minha independência e a minha liberdade para não estar dependente de outras pessoas. A forma mais rápida, mais fácil e óbvia era aprender a usar bengala branca para cegos.

Foi uma adaptação difícil?

Curiosamente, no secundário, algumas décadas antes, já tinha tido algum contacto com isso, apesar de contra a minha vontade. É aquele período difícil dos 15 anos e 16 anos [risos]. Ofereci alguma resistência, mas tive uma professora de ensino especial que me conseguiu dar algumas aulas e ensinar-me algumas técnicas. Portanto, eu já tinha algumas bases teóricas, não foi partir do zero. O problema maior foi que eu precisava dessa formação rapidamente. Como nas instituições para cegos o tempo de espera era de três a seis meses, optei por encontrar uma professora que me aceitou dar aulas de mobilidade. Em finais de 2015, já andava com a bengala branca sozinho.

Em que altura é que pensou, pela primeira vez, em ter um cão-guia?

© Direitos Reservados

Foi através dessa mesma professora. Logo na primeira vez que tivemos reunião, ela falou-me na hipótese de me candidatar a ter um cão-guia. Nunca tinha ponderado isso e lembro-me que fui para casa a pensar no assunto. Fui pesquisar na internet a única escola de cães-guia em Portugal. Já não tinha um cão de companhia há muito tempo e achava que não ia ser possível, que era só para pessoas que tinham um quintal onde podiam largar um cão de porte médio. Achava que para quem vivia num apartamento, como era o meu caso, não iria ser possível. Ainda assim, em meados de 2016, candidatei-me e enviei os documentos necessários. Uma série de circunstâncias fizeram com que tivesse um cão-guia em apenas 14 meses, enquanto que o tempo médio de espera é de três a quatro anos.

“O primeiro contacto não foi fácil. Estava cheio de dúvidas e achava que um cão ia acabar por ser uma fonte de problemas por causa do acesso aos locais públicos e aos transportes.”

Jorge Paiva

É um processo que exige muita disponibilidade financeira?

Os cães-guia são entregues gratuitamente. A questão financeira é responsabilidade da escola de cães-guia, que tem de conseguir um financiamento de 18.000 euros por cada cão que é treinado. A escola é uma IPSS, é feito um processo de candidatura e os cães são atribuídos e entregues gratuitamente a quem eles entenderem que cumpre os critérios de elegibilidade.

No seu caso, o que influenciou essa entrega em tão pouco tempo?

Acredito que quando nós queremos muito uma coisa, nós acabamos por conseguir, e acabamos por facilitar o processo. Eu candidatei-me para um processo que, à partida, iria ser de três anos. A dada altura recebi um telefonema a dizer que existia a possibilidade de ficar com um dos dois cães que a escola vai anualmente buscar aos Estados Unidos. Na altura, pré-selecionaram cinco pessoas e eu tinha sido uma delas. Apesar desse protocolo ter sido suspendido, eu e uma outra menina, que fomos os candidatos selecionados, devido ao que tinha acontecido, tínhamos prioridade na atribuição de um cão. O meu estágio estava marcado, caso eu confirmasse o interesse, para meados de junho de 2017. Sem saber muito bem para o que ia, fui para Mortágua, onde está localizada a escola, com a crença de que se esta é uma solução procurada, é porque de facto traz benefícios em comparação com o uso da bengala.

E como é que foi esse primeiro contacto com o Zangão?

O primeiro contacto não foi fácil. Estava cheio de dúvidas e achava que um cão ia acabar por ser uma fonte de problemas por causa do acesso aos locais públicos e aos transportes. Achava que ter um cão em casa ia implicar muitas obrigações. O estágio é composto por uma semana na escola e uma outra semana no local de residência. No fim do primeiro dia de estágio, a 19 de junho de 2017, tive o primeiro contacto sozinho. Na altura, queria ver os jogos de futebol à noite e tinha o cão sempre de um lado para o outro a querer brincar. E eu cheio de dúvidas a pensar em desistir. Não o fiz, pois, se desistisse, nunca mais na vida iria ter essa oportunidade, uma vez que há muita gente em fila de espera. A partir do segundo dia, comecei a aprender os comandos de andar com cão-guia, já em espaço urbano, em Mortágua, Viseu e Coimbra. Foi aí que comecei a perceber a diferença que um cão fazia. É como se uma pessoa passasse a ter visão novamente porque o cão não vai contra as coisas, desvia-se e faz a gestão dos percursos. E aí é que eu comecei a perceber a grande diferença que começava a ter na minha mobilidade.

Por vezes, passamos num sítio e está tudo bem e passado cinco minutos pode já ter um buraco ou um carro na calçada. Com um cão não existe esse tipo de constrangimentos. Ganhei consciência do tremendo impacto que um cão-guia tem em termos de independência, segurança e até na própria socialização. Quando usamos uma bengala, as pessoas tendem a afastar-se, até pelo receio de perturbar, e com um cão o efeito é contrário. O foco deixa de ser a pessoa cega e passa a ser o cão, e isso faz toda a diferença.

Como é que define a sua relação com o Zangão?

É bastante difícil responder a isso. Claro que um dia isso vai acontecer, mas já não imagino o meu dia a dia sem o meu cão. Ele faz parte, é como uma perna. O meu cão-guia é uma extensão de mim próprio. Portanto, é uma ligação de muita entrega mútua.

© Cláudia Crespo / Mais Guimarães

Disse que a presença do Zangão acaba por promover a socialização. Alguma vez teve alguma experiência menos positiva?

Sei que nem toda a gente tem esta perceção, mas não tenho grandes episódios de problemas. Eu exponho-me muito, viajo bastante e frequento muito espetáculos, sobretudo de música, mesmo em salas fechadas. Aliás, já estive com o meu cão em grandes salas do país.

Tive uma situação em que fui de Guimarães para o Porto e quando cheguei já não tinha autocarro para São João da Madeira. Já era tarde e optei por chamar um transporte. O motorista, quando chegou à minha beira, cancelou a viagem e foi-se embora. Perdi ali uns três minutos, depois abri um procedimento com a operadora e acabei por conseguir, com isso, 500 euros para a escola de cães-guia. Foi por uma questão mais psicológica, porque, no fundo, eu não tive prejuízo nenhum. Fiz a reclamação na plataforma, negociamos e tentaram oferecer-me alguns vouchers, mas expliquei que não era uma questão financeira que estava ali em causa. A única coisa que me exigiram, em contrapartida, foi não divulgar o incidente nas redes sociais.

Sabemos que já viveram muitas aventuras juntos e há, inclusive, uma viagem pela Europa com passagem por várias cidades durante 23 dias. O que é que nos pode contar desta viagem?

Comecei a viajar bastante, primeiro por razões profissionais, mas também em viagens de lazer. A certa altura, já depois de me ter mudado para Lisboa, percebi que não estava realizado profissionalmente, e percebi que se continuasse a fazer sempre o mesmo iria ter sempre os mesmos resultados.

Foi essa tomada de consciência que o meu cão, indiretamente, acabou por me trazer. Decidi liquidar a empresa que tinha, encerrar tudo, e partir para outras aventuras. Em abril de 2018, eu e a minha namorada da altura, também ela cega, fomos passar um fim de semana prolongado a Portimão. Estava no miradouro, junto à praia da Rocha, e lembro-me de estar a pensar que não valia de nada dizer ou escrever sobre o quanto um cão-guia impacta a minha vida sem o demonstrar. Como já tinha feito Erasmus em Barcelona, e falava bem espanhol, pensei em fazer uma viagem pela América Latina.

Os constrangimentos com os cães de assistência fizeram com que alterasse a viagem para a Europa. Quis trocar o conforto da língua pela segurança da legislação.

© Direitos Reservados

Em fevereiro de 2020, lancei o projeto e criei uma campanha de crowdfunding, não só para o financiar, mas também para criar uma comunidade à volta desta ideia. Na altura, as fronteiras estavam fechadas devido à pandemia, não havia comboios ou aviões. Como viajar no inverno não era opção, por causa do arnês, do telemóvel e do guarda-chuva, acabei por calendarizar a viagem para setembro de 2021.

Depois surgiu-me a ideia maluca de, já que ia estar em Roma, conseguir uma audiência com o Papa. Tomei conhecimento que, nessa altura da minha viagem, o Papa estaria numa visita a Bratislava e Budapeste. Consegui agilizar com a minha agência o adiamento de toda a viagem uma semana para frente, de forma a poder estar com ele, a 22 de setembro.

Agora olho para trás, para o dia 14 de setembro, quando parti, quando entrei no comboio em Campanhã, e percebo que fiz aquilo com a maior das naturalidades. Como é que eu não pensei “no que é que me estou a meter nos próximos 24 dias?” . É algo que vai estar documentado no meu segundo livro, agora em abril.

Que principais dificuldades é que encontrou durante esses 24 dias? O Zangão foi crucial para o sucesso dessa viagem?

O Zangão foi crucial em tudo. Aliás, sem o cão não seria possível uma pessoa cega fazer essa viagem. Até podia ser possível, mas seria um desafio muito maior. Por exemplo, eu saio do comboio, num sítio onde nunca estive, numa cidade estrangeira, e peço ao meu cão a porta ou o passeio e ele encaminha-se para lá, caso esteja no seu ângulo de visão. Caso não esteja, ele vai ficar parado e vai ignorar aquilo que eu estou a pedir. Nas estações há sempre pessoas com malas, pessoas com trolleys, o que representa uma indicação sonora. Nesse caso, eu vou fazendo tentativas até encontrar um caminho. É isto que não é possível fazer sem um cão-guia.

“Não faz sentido, por exemplo, entregarmos tantos cães na história da nossa escola de cães-guia como Espanha faz num único ano.”

Jorge Paiva

Relativamente às dificuldades, posso dizer que andei tão entusiasmado a viagem toda que as superei facilmente. Aquilo que consigo falar mais facilmente são as atitudes de empatia que fui tendo ao longo do percurso. Por exemplo, na viagem de TGV, de Barcelona para Paris, entrou uma menina que queria ocupar o lugar ao meu lado, onde estava, na altura, o Zangão. Não é costume ele ocupar um lugar, mas, ao contrário do Alfa, o TVG não tem espaço para que ele fique debaixo do banco. Quase meia carruagem se levantou a explicar que era um cão-guia, apesar de eu explicar que não havia qualquer problema em que ela ocupasse o seu lugar por direito. Assim que se apercebeu, também ela foi flexível em ocupar um outro lugar que estivesse vazio.

Lançou, em setembro de 2020, o livro “Nasci de Novo: Como o meu cão-guia Zangão transformou a minha vida”. Como é que surgiu esta ideia?

É um livro de crónicas. Costumo dizer que decidi escrevê-lo quando já ia a meio. Estava na fase em que o meu projeto pela Europa estava suspenso e eu estava em teletrabalho. Estava a fazer três anos desde o meu estágio para ter um cão-guia e apercebi-me que tinha uma série de memórias e coisas super engraçadas que aconteceram durante o estágio. Foram situações transformadoras da minha vida e não me queria esquecer delas, o que me fez começar a escrever um texto por cada dia de estágio. Comecei a partilhar nas redes sociais, sem grandes expectativas.
Comecei a ter um grande número de interações, então pesquisei qual seria o processo para fazer um livro. Depois de descobrir uma solução interessante para mim, decidi dar continuidade ao hábito da escrita que já tinha criado.

© Cláudia Crespo / Mais Guimarães

E sabemos que está para breve o lançamento do seu segundo livro…

Este é um livro que já acabei de escrever em junho do ano passado. São abordadas questões como as crenças limitadoras, da coragem, visualização, estratégia, objetivos e superação. É sobre nós assumirmos a responsabilidade sobre a própria vida e não ficarmos condicionados pelas desculpas ou pelas circunstâncias externas, que acabam por ser desculpas na nossa vida.

Acaba por ser a descrição cronológica de todas as experiências em todas essas cidades e os transportes entre elas, mas também as experiências com as pessoas, nos hotéis, nos eventos…

Relativamente à realidade vivida em Portugal, considera que os invisuais têm os apoios necessários? Considera que faltam, por exemplo, mais entidades que possam formar cães-guia para que estes possam devolver qualidade de vida?

Faltam, claramente, cães-guia. Em Portugal, treinamos muito poucos cães-guia porque a escola tem limitações de recursos materiais, financeiros e outros. Só está a entregar cerca de 10 a 14 cães por ano. Neste momento, há cerca de 130 utilizadores. No entanto, os cães têm uma vida útil de trabalho de 8 a 10 anos. Ou seja, é fácil perceber que uma instituição que treina pouco mais que 10 cães por ano, quase todos eles são para substituir cães que estão reformados.

Existe uma fila de espera longa, que já vai nos três a quatro anos, com tendência a aumentar. É um cenário que não vai, de forma nenhuma, de encontro àquilo que é desejável. Em Portugal, o modelo de treino adotado demora cerca de dois anos. É feita uma triagem, até aos seis meses, para ver se o cão cumpre os critérios de elegibilidade para ser cão-guia, se é potencialmente um cão tranquilo, sossegado, saudável e com bom temperamento. Até ao primeiro ano, os cães estão em famílias de acolhimento que começam a levar os cães para o trabalho, para os restaurantes, entre outros locais que desenvolvam a socialização.

O período seguinte, até aos dois anos ou dois anos e meio, acontece na escola onde o cão terá a formação diária, através de recompensas positivas. Se o cão completar com êxito esta formação, é feita a atribuição a uma pessoa cega.

Considera que as cidades estão suficientemente bem preparadas para a comunidade invisual?

© Cláudia Crespo / Mais Guimarães

Para uma pessoa que anda com um cão-guia não há grandes entraves. Mais do que na acessibilidade, costumo dizer é que há mais restrições no que toca ao acesso à informação. Além dos semáforos com aviso sonoro, agora também se fala muito acerca dos sensores de vibração, para as pessoas cego-surdas. Já há sistemas, no estrangeiro, em que as pessoas tocam para ativar e consegue-se sentir a vibração. Apesar de eu não sentir muitas dificuldades, reconheço que há várias coisas que se podem fazer. Há sempre aquele problema dos estacionamentos nos passeios em que o cão vai ter que descer para a estrada e é preciso estar atento. São questões que se colocam mais quando se usam as bengalas.

O que é que gostava de fazer e que ainda não conseguiu?

Há muitos projetos que ainda gostava de concretizar, mas tenho sempre a limitação do meu cão, que só tem mais dois anos de trabalho, em condições normais. Gostava de fazer a viagem à América Latina, que teria de ser feita no próximo ano. Se isso não for possível, talvez tenha já de ser com outro cão e numa outra fase.

Tenho ainda outro projeto, que considero muito ambicioso e que já ando a trabalhar há dois anos, que é alargar a oferta de cães-guia em Portugal. Não faz sentido, por exemplo, entregarmos tantos cães na história da nossa escola de cães-guia como Espanha faz num único ano. O que já é feito é muito bom e faz muita diferença, mas peca pela falta de ambição. Deveria estar a ser feito muito mais.

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