O tráfico humano “existe em todos os locais e está bem mais perto do que imaginámos”

De acordo com dados do Observatório do Tráfico de Seres Humanos, a sinalização de vítimas de Tráfico de Seres Humanos tem aumentado em Portugal. Em 2020 foram efetuadas 229 sinalizações, 29 das quais de menores, com uma média de idades de 12 anos. Comparando com 2019, o total de sinalizações diminuiu em 52 registos, mas isso não é sinónimo de que o crime tenha diminuído.

Enquanto país de destino, Portugal teve, em 2020, 80 vítimas sinalizadas, que se encontravam em Santarém em exploração laboral. Enquanto país de origem, houve 40 vítimas sinalizadas, com Espanha a ocupar o lugar de país com maior probabilidade de exportação.

Foram também registados 41 crimes de Tráfico de Seres Humanos pelos Órgãos de Polícia Criminal. São menos 40 crimes face ao ano 2019.

Em Portugal, a maior parte das vítimas sinalizadas são do género masculino e adultas. São maioritariamente exploradas para fins laborais. As vítimas do género feminino adultas estão mais associadas ao tráfico para exploração sexual.

Em entrevista à Mais Guimarães, Marta Pereira, coordenadora nacional das respostas de assistência a vítimas de Tráfico de Seres Humanos da Associação para o Planeamento da Família (APF) Norte, explica de que forma é que a associação tem tido um papel ativo na identificação e proteção destas vítimas. A responsável ressalva ainda que é fundamental “o olhar atento e capacitado da população em geral para perceber os sinais e indícios deste crime”.

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De que forma é que a APF Norte começou a desenvolver a sua ação no combate ao tráfico humano?

A APF – Associação para o Planeamento da Família, pela sua larga experiência de intervenção junto de pessoas que exercem trabalho sexual, nomeadamente através do projeto Espaço Pessoa que intervêm na cidade do Porto desde 1997, constituiu-se parceira do Projeto CAIM (2004-2009). Este foi um projeto piloto em Portugal sobre tráfico de mulheres para exploração sexual, financiado pela Iniciativa Comunitária EQUAL, o qual impulsionou o atual modelo de referenciação nacional, a legislação em vigor e as medidas de política.

Em conjunto com a Comissão para a Igualdade de Género (CIG) construiu e reviu os manuais que agora se espelham nas práticas de intervenção criadas a nível nacional: Modelo de Sinalização-Identificação e Integração de vítimas de Tráfico de Seres Humanos (TSH) e Kit de Formação. Da mesma forma, realizou a disseminação dos mesmos junto a profissionais com intervenção direta ou indireta no fenómeno, junto às forças de segurança e magistrados.

Desde essa altura, a sensibilização e formação de agentes de entidades governamentais ou não governamentais, assim como junto à comunidade em geral tem sido uma constante, contando-se uma inúmera experiência em ações de formação para públicos tão diversificados como as forças de segurança, profissionais da área social, da saúde, do exército, das redes sociais concelhias, de outras ONGs, de Instituições de Ensino, entre outros.

Mais ainda, a APF constitui-se como ONG de referência em Projetos transnacionais, representando Portugal em redes parceiras, projetos e encontros de trabalho e troca de boas práticas, o que permite ter atualmente um conjunto de ONGs parceiras de diferentes países com as quais desenvolve um trabalho de articulação sempre que são sinalizados e assistidos casos de vítimas de TSH (sendo Portugal país de origem, de transito ou de destino) em que há necessidade de acolhimento, apoio no retorno assistido, contacto com familiares, partilha de informação, entre outros…

Desde 2008, a APF é também responsável pela gestão do CAP – Centro de Acolhimento e Protecção para mulheres e seus filhos menores vítimas de tráfico de seres humanos e da Equipa Multidisciplinar a nível nacional.

Para além da APF, assinaram o Protocolo de Colaboração para a criação deste Centro, as seguintes entidades: Presidência do Conselho de Ministros (PCM), do Ministério da Administração Interna (MAI), do Ministério da Justiça (MJ), do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social (MTSS), representado pelo Instituto da Segurança Social (ISS).

Este Centro de Acolhimento e Proteção (CAP) é a primeira valência criada neste domínio. Uma resposta de âmbito nacional que funciona em permanência, 24 horas por dia e durante os 7 dias da semana. A sua localização é confidencial e móvel, atendendo à necessidade constante de garantir condições de segurança, estabilidade e bem-estar das pessoas acolhidas.

A Equipa afeta ao CAP detém uma intervenção direta ao nível das questões relacionadas com o apoio psicológico, médico, social e elaboração e implementação do Processo individual de cada vítima sinalizada, identificada e acolhida como vítima de TSH. É também responsável pelo encaminhamento para programas de apoio especializados de forma a contribuir para a autonomização e empoderamento de cada mulher, bem como pelo retorno assistido ao país de origem, no caso de ser uma opção segura para a vítima. Esta Equipa conta com a colaboração dos OPC, para a planificação e execução da proteção pessoal das vítimas.

Esta Equipa desenvolve, ainda, ações de acompanhamento, designadas de pós-saída, estas atuações pretendem por um lado obter feedback relativo às trajetórias de vida e ponto de situação face aos percursos das utentes já autonomizadas e, por outro reforçar o apoio técnico caso surjam necessidades aos mais diferentes níveis, sejam eles de foro psicológico, social, jurídico ou outros.

Desde 2012 que a APF presta assistência especializada aos vários tipos de vítimas de TSH através de 5 Equipas Multidisciplinares Especializadas Regionais (EME) – Norte, Centro, Lisboa, Alentejo e Algarve. Estas cinco equipas levam a cabo uma intervenção direcionada para a assistência a vítimas de TSH a nível regional, atuando numa ótica de proximidade e articulação com diversos intervenientes locais nos processos de sinalização, identificação e integração de presumíveis vítimas.

Estas equipas têm permitido uma intervenção descentralizada e especializada na identificação e apoio a vítimas de TSH e uma maior capacitação e sensibilização para o fenómeno.

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Disponibilizam ações de (in)formação quer junto a diversos grupos de profissionais quer junto à população em geral. Da intervenção destas 5 Equipas foram criadas as 5 Redes Regionais de Apoio e Proteção a Vítimas de Tráfico de Seres Humanos, as quais integram parceiros de entidades governamentais e não governamentais assim como as forças de segurança, por forma a uma agilização na comunicação e trabalho regional em rede.

Em 2019, a APF assume a gestão de mais um CAP, este para homens e filhos menores vítimas de TSH.

No decorrer do ano de 2019 deu, novamente mais um passo inovador e pioneiro em Portugal com a abertura da primeira Estrutura de Autonomização para Vítimas de Tráfico de Seres Humanos. Esta tem como finalidade, facilitar a transição de uma resposta de acolhimento mais protegida para uma autonomização, de forma estruturada e faseada das vítimas de TSH, mediante acompanhamento técnico e desenvolvimento de competências, designadamente de gestão doméstica e financeira, de sociabilização, de empregabilidade e emprego /formação. Ao mesmo tempo que se promove na comunidade a integração de pessoas mais competentes e empoderadas, o sistema de resposta às vítimas de TSH passa a contar com um maior número de vagas disponíveis em CAP. Acreditamos que esta será uma boa prática com potencial de replicação noutros pontos do país.

Pela vossa experiência, este é um crime que tem vindo a aumentar?

Penso que podemos afirmar que é um crime que começa a tornar-se menos oculto, que se tem agido no sentido de uma maior desocultação deste fenómeno, pela formação e informação de agentes especializados e da comunidade em geral. Dotar para a sinalização e para os procedimentos de atuação leva a mais sinalizações. Contudo, isto não pode não ser sinónimo que o crime esteja a aumentar, mas sim que estamos a dar conta que ele existe e a atuar devidamente para o travar. Mas ainda temos um longo caminho a fazer neste sentido, a desocultação deste crime e a capacitação da sociedade para atuar será a chave para o combate ao mesmo. Todavia, a conjuntura nacional, europeia e até mundial, o aumento da pobreza, os conflitos armados, as assimetrias e desigualdades facilitam o aumento de situações de Tráfico de Seres Humanos e facilitam processos de angariação de vítimas. Neste sentido, tem sido evidente nos últimos tempos a presença de mais sinalizações e com percursos e contornos diferentes.

Quantas pessoas costumam acolher por ano e qual é o processo de acolhimento?

A APF gere dois dos cinco Centros de Acolhimento existentes em Portugal, um para Mulheres e seus filhos/as menores, com capacidade para seis pessoas e outro para homens e seus filhos/as menores, com capacidade para 12 pessoas. O número de acolhimentos anual é sempre muito variável, uma vez que depende do tempo que cada pessoa necessita para a sua estabilização e futura autonomização. Todavia, desde a abertura destes centros foram acolhidas um total de 179 sobreviventes do crime de TSH.

Pela vossa experiência, de que forma é que estas pessoas refazem as suas vidas?

A intervenção levada a acabo por estas equipas tem sempre como primeira finalidade a proteção das pessoas identificadas como vítimas deste crime e por isso sempre que necessário serão acolhidas nos Centros de Acolhimento e Proteção com localização confidencial e todas as normas de segurança necessárias para o maior sigilo possível de toda a situação.

Nestas respostas especializadas, as equipas intervêm no sentido de permitir a estabilização física, emocional e psicológica das pessoas acolhidas. Neste sentido os Centros asseguram as condições de suporte de vida, que lhes permitam potenciar o sentimento de confiança, segurança e estabilidade, proporcionando os cuidados adequados às suas necessidades, interesses e potencialidades. Os CAP apresentam-se como uma oferta multidisciplinar, com respostas de apoio psicossocial, psicoterapêutico, jurídico, médico e de encaminhamento assistido (nos casos em que as vítimas pretende o retorno aos sues países de origem), desenvolvimento de atividades promotoras de socialização, atividades de lazer (culturais, lúdicas e recreativas), educação/formação profissional e integração no mercado de trabalho, sempre com o objetivo de uma autonomização capaz, empoderada, segura e concertada para evitar novos processos de vitimação e de retráfico.

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Sabemos que o CAP vai mudando a sua sede…

Estas mudanças estão relacionadas com a questão anterior, uma vez que a necessidade de proteção das pessoas sobreviventes do crime de TSH é o pilar principal da intervenção destas equipas, pela natureza do crime, porque muito frequentemente as pessoas sobreviventes ao TSH são procuradas pelos seus traficantes e exploradores/as com intenção de as silenciar, de não permitir que testemunhem em processos judiciais e/ou porque querem que retomem às redes de Tráfico.

Face a isto, inevitavelmente os CAP têm de ter regras de segurança muito rígidas, a localização destas estruturas tem de ser confidencial e todos os processos sigilosos. Estas regras têm de ser cumpridas ao pormenor e sempre que haja uma fuga de segurança pode surgir a necessidade de uma alteração da localização da estrutura. No caso do nosso CAP de mulheres já foi necessário relocalizar a estrutura 3 vezes, de forma a mantermos o sigilo e proteção indispensáveis para esta resposta.

Costumam receber denúncias? Trabalham em conjunto com as autoridades?

Sim, as Equipas Multidisciplinares Especializadas Regionais gerem 5 linhas telefónicas 24h de resposta a sinalizações de TSH, pelo que recebem muito frequentemente denúncias deste crime e trabalham sempre de forma muito próxima com as autoridades. Para tal, estão nomeados pontos focais na área do TSH em cada Órgão de Polícia Criminal (OPC) com os quais as EME articulam sempre que necessário e vice-versa.

As EME acompanham frequentemente operações policiais e inspetivas, colaborando com as diferentes entidades, nomeadamente PJ, SEF, GNR, PSP, ACT. Sempre que o OPC tem suspeita da existência de indícios de tráfico de seres humanos para as diferentes formas de exploração e a presença de presumíveis vítimas na operação em curso, articula com as nossas equipas no sentido de poderem acompanhar. Assim, as EME poderão focar a sua intervenção na vítima, na avaliação das suas necessidades, na sua estabilização física, emocional e psicológica, capacitar para os seus direitos e deveres e iniciar a preparação para uma recolha de testemunhos mais capaz e empoderada. Permite, assim que os OPC e entidades inspetivas se possam focar na investigação, detenção de arguidos, recolha de prova e informação fulcral para os processos judiciais futuros.

De que forma é que as localidades com mais casos identificados representam (ou não) os locais onde existe mais tráfico humano?

Considero de real importância desconstruir que o TSH é algo dos “outros” e salientar que Tráfico Humano existe em todos os locais e que está bem mais perto de nós do que muitas vezes imaginamos, que é um fenómeno que pode acontecer em todas as regiões e que a não sinalização de vítimas e de casos de TSH em determinada localidade/município pode significar apenas pouca formação, informação e capacitação para a sinalização deste crime, que ainda é tão oculto. Aumentar o número de sinalizações, aumenta o número de assistência às vítimas, aumenta os casos em investigação, que podem culminar num aumento de penas aos traficantes e exploradores, que é o que ajudará a travar este fenómeno tão hediondo.

O que é que as pessoas podem fazer caso tenham suspeitas deste crime? Que apelo é que gostaria de deixar?

Tráfico de Seres Humanos é um Crime Público, logo é nosso Dever sinalizar qualquer situação que possa levantar suspeitas, raramente as vítimas conseguem pedir ajuda, por vezes têm dificuldade em se reconhecerem como tal, têm muito medo de represálias contra si contra os seus familiares, receio dos OPC, desconhecem as leis, serviços e procedimentos de resposta.

Neste sentido é fundamental o olhar atento e capacitado da população em geral para perceber os sinais e indícios deste crime e os procedimentos para a sinalização, que poderá ser feita através de um OPC, de queixa eletrónica ou diretamente às EME. Reforço que estas denuncias poderão ser anónimas e deixo os contactos das EME que estão disponíveis 24h.

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