REDES SOCIAIS, DEMOCRACIA E RAZÃO
Francisco Teixeira Professor
por Francisco Teixeira
Professor
“A rua também pode matar a democracia e, para que isso não aconteça, precisamos de horizontes de racionalidade capazes de produzir leis, mediações e modulações das pulsões. Mas não há mediações sem liberdade e palavra à solta”.
Parece ter-se tornado um lugar-comum do mainstream político, jornalístico e comunicacional defender que as “redes sociais”, ou a expressão política e cultural das redes sociais, é responsável por uma onda avassaladora daquilo a que comumente chamam “populismo”, no melhor dos casos, e irracionalismo, nos piores. Mais: parece ser já um adquirido da “alta cultura” que o processo deliberativo que ocorre nas redes sociais constitui um empecilho à própria democracia que é grandemente responsável pela degenerescência democrática a que assistimos na Europa e no mundo. Nesta crítica elitista, as redes sociais são a terra dos trolls, o cidadão internáutico que não resiste a dizer o que quer sobre o mundo, mesmo que nada saiba dele, destruindo tudo à sua passagem, a começar pela boa educação e acabar na própria ideia de racionalidade.
Comecemos pelo óbvio. As redes sociais permitiram um tão vasto acesso à expressão pública de ideias e sentimentos de si que mudaram o panorama cultural humano. Ao permitirem que qualquer pessoa tenha acesso a relações infinitas de ideias e expressões de si, as redes sociais trouxeram à ideia de soberania popular novas e radicais dimensões no que diz respeito à extensão e poder do querer individual. Nunca como antes, na civilização e na história, as pessoas se puderam fazer presentes ao mundo de modo tão livre e conspícuo. Não sei como isto pode ser negado: as redes sociais aumentaram exponencialmente a liberdade individual e, nesse sentido, constituem um contributo superlativo para a configuração da democracia e da liberdade contemporâneas. Bem entendido, embora não pareça as redes sociais são mediadas e não constituem uma integral presentificação de cada um a cada um no mundo inteiro. Países controlam as redes, empresas determinam os seus âmbitos de ação, outras configuram os modos de atenção gráfico e comunicacional, etc. Mas, no essencial, pelo Facebook ou pelo Twiter pode chegar-se a quase todo o lado de um modo infinitamente mais direto e rápido do que em qualquer coisa ou de qualquer modo pensado ou efetivado há 30 anos, se exceptuarmos o que foi pensado pela ficção científica. Não se duvida que esta presença de “todos” na rede também possibilita poderosos mecanismos reais ou virtuais de controlo e vigilância da vida pública e privada de cada um, até de comunidades inteiras, o que leva consigo a ideia de que as redes têm de ser reguladas e libertadas da vigilância e do controlo, desde logo do próprio Estado e das grandes empresas e corporações multinacionais. Mas como poderia ser de outro modo?
Também é óbvio que a abertura direta, e quase infinita, da possibilidade da palavra individual ao mundo traz consigo uma crise de racionalidade, entendida aqui a ideia de crise como instabilidade epistémica. Descontando o facto de nunca ter sido clara a existência de uma única racionalidade e qual a sua natureza, não se pode duvidar que se coloca, hoje, facticamente, uma horizontalidade ou deshierarquização sem precedentes nas relações comunicacionais, criando desafios novos à comunicabilidade e, portanto, à própria ideia e possibilidade de uma vida boa, vivida de modo comunitariamente significativa que, por definição, exige sempre algum modo de mediação. A ideia é a seguinte: se tudo se pode dizer e chegando a tanta gente, mesmo o mais absurdo e maléfico, e se tudo vale o mesmo, como poderemos viver juntos, sem nenhum horizonte de hierarquia comunicacional e ética?
Por mais difícil que seja a pergunta, e mais ainda a resposta, acontece que não é possível, nem desejável, proibir as pessoas de falar e comunicar, mesmo que de modo absurdo. Assim sendo, a única solução para este novo horizonte de poder, saber e des-saber, não pode ser o da desqualificação da imensa maioria dos cidadãos, ou dos consumidores, seja lá como for. Pelo contrário, se não se quer desistir da deliberação racional, da democracia e da lei, o caminho só pode ser o inverso, i.e., o de apostar na racionalização (nas racionalizações) da rede, na disputa pela palavra e pelo sentido, por mais duro que seja o combate. Bem entendido, este combate, para além de exigir profundas mudanças nos paradigmas educativos (sem o que tudo o resto será vão), exige que os velhos caminhantes dos passos perdidos alcatifados da representação, da erudição e autoridade académica se tenham que expor e arriscar nas agruras da liberdade cidadã direta, com toda a estupidez que lhe vem associada. Mas, justamente, em democracia a estupidez é livre (embora não seja obrigatória) e nem sequer é monopólio do anonimato digital. Pelo que não pode ser proibida. Aliás, nem sequer a irracionalidade ou o absurdo são monopólio dos trolls facebokianos. O modo irracional e disruptivo como as grandes instituições internacionais e os grandes bancos, por exemplo (veja-se a desrazão que desorientou a recente crise da CGD), têm gerido o mundo, não são certamente menos relevantes que a palermice facebokiana ou a adição digital, mesmo que reproduzidas ou partilhadas um milhão de vezes.
É espantoso como a elite alcatifada de cada momento é capaz de esquecer que a democracia nasceu na rua e que foi a rua que a susteve, e que quando se quis acabar com a democracia a primeira coisa a fazer sempre foi esvaziar a rua de palavras e pessoas, sempre com o argumento de que o bem comum e a razão são património exclusivo de poucos. Bem entendido, a rua também pode matar a democracia e, para que isso não aconteça, precisamos de horizontes de racionalidade capazes de produzir leis, mediações e modulações das pulsões. Mas não há mediações sem liberdade e palavra à solta. Sem a Santa Liberdade e a Santa Palavra. O combate prossegue, portanto.
(Artigo inicialmente publicado a 03 de janeiro de 2017 no Jornal “O Publico”)
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