Centros de Saúde: sem telefonar ninguém entra

Os vimaranenses estão a ter mais dificuldade de conseguir uma consulta médica.

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As unidades de saúde familiar estão de porta fechada e os utentes devem telefonar, antes de se deslocarem às instalações. Se telefonarem, pode acontecer que ninguém atenda o telefone. Na experiência que fizemos, depois de longos minutos a ligar para a Unidade de Saúde Amorosa XXI, não conseguimos chegar à fala com ninguém.

A situação repete-se pelo concelho nas diversas unidades de saúde familiar. Numa das vilas do concelho, uma mulher de idade afastava-se da unidade de saúde familiar com ar desiludido. O edifício está encerrado e na frente da porta está um segurança. “Ninguém entra”, diz a mulher em jeito de aviso, não vá o jornalista desprevenido pensar que pode entrar. Eu não quero entrar, só vim ver como está a funcionar, explica-se o jornalista. “Como é que está a funcionar? Não funciona! A gente liga eles não atendem, a gente vem cá eles não nos deixam entrar”, desabafa.

A mulher segura na mão tremula, não se sabe se dos males da idade ou dos nervos, uma série de folhas, análises, relatórios. Exibe os papéis como prova daquilo a que vinha. O funcionário explicou-lhe, pela porta entreaberta, resguardando-se no interior, que teria de mandar os exames por email.

“Eu sei lá o que é isso, eu nem tenho internet. Diz-me que peça a um filho… Os meus filhos têm mais que fazer…” – Desabafou durante mais um bocado e acabou por ir-se embora, inconformada.

O caso resume o que se passa nos cuidados de saúde primários, criou-se uma barreira, supostamente para impedir as infeções, que afasta os doentes dos profissionais de saúde, especialmente dos médicos. A barreira é particularmente difícil de transpor por aqueles que têm menos formação, pelos mais pobres e pelos mais velhos, mas afeta a todos. Recentemente um professor universitário de Guimarães queixou-se nas redes sociais de tentar, durante uma manhã inteira, contactar a sua médica de família sem sucesso.

Mesmo que o utente consiga estabelecer contacto com o funcionário da unidade de saúde, isso não lhe garante uma consulta. Se antes os funcionários tinham um número de consultas para cada médico por turno, que iam preenchendo na medida das necessidades dos utentes, agora essa autonomia acabou. Neste momento, o utente tem que explicar ao médico as queixas que tem e por que razão pretende a consulta. O médico decide então se a consulta será presencial ou se o assunto se resolve com a figura a que chamam “consulta telefónica”.

Na “consulta telefónica” podem acontecer cenas tão caricatas como o médico mandar uma mãe olhar para a garganta do filho e verificar se tem pus, para decidir se vai receitar um antibiótico.

Na “consulta telefónica” podem acontecer cenas tão caricatas como o médico mandar uma mãe olhar para a garganta do filho e verificar se tem pus, para decidir se vai receitar um antibiótico. A mãe em causa recusou-se e acabaram por lhe marcar uma consulta presencial. Com a gestão da agenda dos médicos entregue à sua discrição, há alguns que trabalham muito e outros que reduziram os utentes que veem a menos de um terço.

Numa unidade de saúde familiar registamos o caso de uma médica que se deslocava à rua para fotografar com o seu telefone os exames dos doentes que não tinham forma de os enviar por via digital. Por outro lado, há médicos a fazer duas ou três consultas presenciais em turnos onde, antes, faziam 15.

Se juntarmos a esta dificuldade de acesso a interrupção nas consultas de vigilância de hipertensos, diabéticos, planeamento familiar e doença pulmonar obstrutiva crónica e dos rastreios do cancro do colo do útero e do cancro colo-retal, entre março e julho, é provável que o SNS venha a enfrentar problemas graves num futuro breve e que a mortalidade aumente. Muitos dos ganhos em termos de saúde pública nas últimas décadas estão relacionados com estes programas de vigilância e deteção precoce que agora estão completamente descontrolados.

Grande parte dos serviços de enfermagem nunca pararam, foi o caso da vacinação ou da distribuição de contracetivos já prescritos, dos pensos ou dos injetáveis. As consultas de saúde infantil e de saúde materna também nunca foram interrompidas. Tudo o resto está descontrolado.

Em circunstâncias normais, o utente que era seguido com regularidade ficava com a próxima consulta marcada, no momento em que era atendido. Este esquema simples, mas eficaz para não perder o rasto dos utentes, perdeu-se. As USF andam agora a pescar os doentes ou a esperar que eles regressem por iniciativa própria. Com a agravante de as agendas continuarem fechadas e, mesmo quando os utentes são repescados, as consultas de seguimento continuam a não ser marcadas. “Perderam-se anos de trabalho e vai levar anos a repor a organização que tínhamos”, desabafa uma enfermeira.

Em Portugal, há registo de mais 6 312 mortes, em 2020, face à média do período homólogo nos anos de 2015 a 2019. Mais de quatro mil destes falecimentos não podem ser explicados pela covid-19.

No concelho de Guimarães, a mortalidade, até 20 de setembro, está 35 unidades acima da média dos cinco anos anteriores. Registaram-se 893 falecimentos, comparados com uma média de 858,4, em igual período, entre 2015 e 2019. Uma variação que pode ser explicada, quase completamente, pelos 31 óbitos por covid-19 (até 16 de setembro), anunciados pelo ACES do Alto Ave no concelho. Na verdade, o nível de análise “concelho” pode ser demasiado pequeno para conseguirmos perceber o fenómeno que já é visível nos números nacionais.

Uma coisa parece certa, os vimaranenses estão a ter mais dificuldade para conseguir uma consulta médica nos cuidados de saúde primários do SNS e como muitos não têm possibilidade de recorrer à medicina privada, as consequências acabarão por se notar.

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