25 DE ABRIL: A POESIA ESTÁ NA RUA
ANA AMÉLIA GUIMARÃES Professora

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por ANA AMÉLIA GUIMARÃES
Professora
Nos últimos anos, ao aproximar-se o dia 25 de abril, sinto, confesso, uma certa melancolia que advém da forma como esta data maior da nossa história recente é (mal)tratada. O chamado “arco do poder” tudo fez para meter o 25 de Abril “na gaveta”, limpar-lhe o pulsar revolucionário, apagar-lhe o indissociável projecto de transformação, ruptura e mudança. Desejam na sua agenda ideológica transformar o 25 de Abril em apenas mais um feriado, anódino, institucionalmente empalhado. É que Abril e a sua revolução, fundadora da democracia, continua a inquietar aqueles que nos dizem que só há um caminho, e que, como no antigamente, “manda quem pode e obedece quem deve”…
No entanto, sei que chega a noite de 24 e que não vou ficar em casa. Saio para me juntar aqueles que desejam, sem saudosismo ou nostalgia, festejar o dia inicial inteiro e limpo /Onde emergimos da noite e do silêncio 1. E confesso, também, que transporto, sempre, a alegria de nessa noite ouvir, de novo, a sempre nova e poderosa Grândola, o jovial hino do MFA, a Liberdade de Sérgio Godinho… Só há liberdade a sério quando houver /A paz, o pão/ habitação/ saúde, educação. Canções de resistência e luta, belíssimas, tão actuais, tão presentes… e tão ausentes do espaço mediático que os novos “donos disto tudo” controlam.
… recordo, com emoção, aquele dia espantoso… de manhã uma azáfama diferente, os pais mais atentos do que o costume às notícias na rádio.
– Hoje não vais à escola. Disseram “com um brilhozinho nos olhos”. É a primeira recordação desse dia.
Depois lembro-me das pinturas (em papel) junto ao pavilhão do INATEL, lembro-me do concerto dos ainda tão jovens Trovante na cooperativa Fogo Posto, na R. da Caldeiroa, lembro-me de numa noite fria irmos todos, também o tio Eduardo e a tia Lurdes, para a porta de cadeia de Custóias, tantas recordações, tantas imagens num caleidoscópio de acontecimentos, de intensidade, de sentir no ar a possibilidade concreta de que “uma outra vida é possível”.
Talvez a idade que tinha na altura, uma criança, tenha contribuído para um olhar ingénuo e voluntarioso do que via e vivia… mas como eu, e com idades diferentes, milhares e milhares, um nunca acabar de gente, sentiu e viveu o mesmo. Tirando os fachos, é claro!
Guardo desses dias um sentimento de festa partilhada, muita gente alegre com lágrimas felizes nos olhos. Em casa, os pais conversavam sobre os acontecimentos políticos diários, pois a cada dia tudo mudava. Fomos passar uma temporada à Cooperativa Agrícola Estrela Vermelha (cooperativa da reforma agrária), lembro-me de dormir em cima da palha e de passar o dia a brincar com os filhos dos cooperantes (trabalhadores agrícolas). Lembro-me de fazer teatro, fantoches, também me lembro de assistir, mas o fazer fica mais claro e perene…
Até que… numa noite, ao jantar, nessa altura tínhamos uma TV portátil branca na cozinha, toca a Grândola e o meu pai, num tom triste disse-nos: ouçam que é a última vez que a ouvem na televisão (era o 25 de novembro de 75). Não se enganou o meu pai. E se o Zeca Afonso passa na televisão é como ilustração historiográfica, não é pela sua beleza, pela sua poética ou, muito menos, pelo seu pulsar transformador.
…
Depois já só me lembro do Cavaco… voltaram as moscas sem valor com novos fatos. Voltaram sem daqui nunca terem saído. Andaram camuflados, de cravo vermelho ao peito, com a reforma agrária e o socialismo nos seus programas políticos … imprescindível ler “A verdade e a mentira na revolução”, de Álvaro Cunhal.
Foram 19 meses num dia. A possibilidade concreta, à mão do povo de fazer acontecer. E se “Já murcharam tua festa, pá/[mas], certamente/esqueceram uma semente nalgum canto de jardim” 2.
1 Sophia de Mello Breyner Andresen, in ‘O Nome das Coisas’
2 Chico Buarque, Tanto Mar (2ª versão, 1978)