António Gama Brandão: “O afeto é o segredo”
Entrevista publicada na edição de junho da revista Mais Guimarães.

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António Gama Brandão chegou a Guimarães e o sentimento foi “de frustração”. Não havia serviço de pediatria. A mortalidade infantil era de 144 em cada mil nascimentos. Ficou “desesperado” e resolveu atuar: conseguiu criar o serviço em 1971, depois de uma luta de cerca de dez anos.

Imagino que alguém vindo de fora tivesse tido algumas dificuldades em implementar esse trabalho.
Tive muito, tive que, digamos, me consolidar como pediatra, e no que era desconhecido tive dificuldades… Falei ao professor Fonseca e Castro, porque eu estava ligado aos serviços médicos sociais e ele ficou todo contente. Mas, mesmo assim, demorou mais de um ano… Então, o serviço de pediatria demorou 10 anos. Por culpa local e por culpa dos serviços Estado, porque, por exemplo, pediram projetos para as comissões que atuavam e perderam.
Estamos a falar ainda do período do Estado Novo.
61. De maneira que, enquanto esperava, dediquei-me à clínica privada. Apesar de ser desconhecido, em pouco tempo, comecei a ter bom resultados e bons doentes. Mas começaram a surgir problemas muito graves. Recordo pneumonias graves, desidratações graves, e os pais não queriam… Uma vez no consultório, tinha uma criança com sinais clássicos de uma meningite, daquelas clássicas. Disse-lhe assim: “olhe, este miúdo tem que ir para o Porto, para um hospital central, porque está mal. Tem que se confirmar o diagnóstico e tem que fazer o tratamento”. Os pais disseram: “não vamos”. Nessa altura não admitiam famílias junto à criança. Se ele morrer, é sem nenhum familiar ao lado. Depois diziam que tinham muita confiança em mim e eu fiquei um bocado assustado, porque, sozinho, sem rede a proteger-me, sem ninguém. Mas fiz a punção lombar, era meningite, mandei para o laboratório e tratei, disse: “se houver um retrocesso, se piorar, nesse caso eu não trato, tem que ir para o Porto”. Felizmente, a coisa correu bem. Começou-se a falar e fiz dezenas de punções lombares. Ainda hoje eu sinto arrepios ao pensar os cuidados que a gente tinha no hospital para fazer a punção lombar. Foi um risco muito grande, mas, perante a resistência dos pais, era difícil. Felizmente, a coisa correu bem. Entretanto fui chamado para Angola, estive dois anos em Angola e o serviço parou um bocado nesses dois anos. Depois vim e na altura já havia outra pediatra, a Fátima Jordão, que era cá de Guimarães, de maneira que a coisa melhorou.

Mais tarde, eu lutei pela unidade de Neonatologia ligado ao serviço de pediatria, mas demorou muito tempo, não havia instalações adequadas. A mortalidade infantil também era muito grande, porque havia muitos partos que não nasciam no hospital. O serviço de obstetrícia também era pequeno e era mau. Depois o doutor João Afonso, que era um grande obstetra, conseguiu fazer um pavilhão esplêndido. De maneira que, depois, a coisa correu bem. O saneamento era deficiente, falta água potável, falta alimentação. Isto contribuiu para a mortalidade infantil. Não havia muitas vacinas, havia poucas, muitas doenças infeciosas. Eu tive internado tétano, uma coisa que já se não via há anos num país civilizado, por não terem vacina. Com o progresso da medicina e da tecnologia, o diagnóstico tornou-se muito mais fácil e a terapêutica. Embora se perdesse um pouco, com os computadores… o humanismo decresceu um bocado, porque aquele diálogo com o doente, entre médico e doente, passou a ser um pouco menor. Mas, de qualquer maneira, foi um avanço. O professor Arnaldo Sampaio, que era um dos maiores sanitaristas do país, dizia que havia três hipóteses para vacinar. Era vacinar, vacinar, vacinar. Com a maior parte dessas doenças infeciosas morria muita gente. Agora, felizmente, a coisa melhorou, o saneamento, isso transformou-se totalmente. Mas o que me admira é que esta zona de Guimarães era das piores do país, isso é que me admira.
Sente-se orgulhoso por Guimarães estar a acompanhar o resto do país e ter melhorado significativamente?
Sim, sim. Depois quando, felizmente, no Governo era a doutor Leonor Beleza a Ministra da Saúde e o doutor Albino Aroso… Junto à Ministra, fez-se uma Comissão de Pediatras e Obstetras e com o auxílio do Governo. A mortalidade infantil, agora, somos das melhores do mundo. Foi um passo, ao mesmo tempo, os problemas de higiene, de nutrição… Uma coisa que contribuiu muito, também, e eu também fui dos fundadores do Leonismo em Portugal, foi a campanha do leite nas crianças.
Foi uma campanha que idealizou no Lions Clube?
Foi quando o professor Hélio Alves, da Francisco na Holanda, foi Presidente, no segundo ano de existência do Lions, lançou essa ideia. Os Lions todos o estimulamos. Era dar um quarto de litro de leite a todas as crianças das primárias do concelho de Guimarães, que eram mais de três mil. Um quarto de litro, cinco dias por semana. A campanha durou bastante tempo, eram os Lions que faziam tudo. Pediu-se ao professor Veiga Simão, que era o Ministro da Educação Nacional, para tomar conta disso e dispersar, globalizar no país todo.
Estamos a falar de uma campanha que nasceu em Guimarães e se globalizou pelo país muito rapidamente.
Muito rapidamente. O consumo de leite entre nós era terrível. As mães não queriam amamentar, miúdos bebiam muito alcoólicas, aguardente. Essa campanha dos Lions foi de uma utilidade impressionante na alimentação. Fez-se um livro com uns articulados que em todas as cantinas devia haver pequeno-almoço, almoço e lanche, que se devia constituir um conjunto de nutricionistas para vigiarem a alimentação, higienistas para ver as qualidades da limpeza e assim, e psicopedagogos para orientarem e lutarem contra os problemas que houvesse. Estava muito bem feito.
Como é que vê o Serviço Nacional de Saúde?
Tem evoluído de uma forma notável. É pena haver umas quezílias consoante os governos entre o serviço público e o privado. Quer dizer, eles complementam-se. O essencial é o serviço nacional de saúde. O particular há intervenções que não faz. O público faz tudo.
Há muita imigração do público para o privado de bons médicos, porque pagam mais, pagam melhor…
Há algo que gostasse de ver implementado ou pudesse ser melhorado nos serviços de pediatria?
Funciona tão bem. A gente tem que olhar para as possibilidades económicas do país. Por exemplo, nos diabetes, quase todas as crianças têm uma máquina agora que é cara, 15 ou 20.000, para se tratarem. Quereria mais ainda, mas a gente tem que ver o nível do país. A gente sonha, mas temos que ser cautelosos. Há sítios que estão muito piores. Mas funciona muito bem o serviço, quer de pediatria, a unidade de neonatologia e obstetra.
Estive 30 e tal anos diretor do serviço e quando me reformei resolvi abandonar o hospital…
“Ainda hoje fartam-se de me telefonar para eu ver crianças.”
António Gama Brandão
Custou muito esse momento de deixar o serviço?
Custou. Fizeram homenagens, deram o meu nome ao serviço, foi importante. Mas a diretora a seguir, que foi a Fátima Jordão, disse “tem que vir às nossas reuniões”. Eu estava habituado a vir de Lisboa a reuniões bissemanais, discussão de casos clínicos… Por exemplo, o professor Norberto Teixeira Santos, que conheci em Lisboa, pedi-lhe para vir cá fazer uma palestra e os elementos dele, periodicamente, vinham cá fazer palestras sobre especialidades. De maneira que se cria um ambiente muito bom, vivia-se o que há melhor na ciência. Em Lisboa, passaram lá os melhores pediatras europeus, uma semana inteira no serviço a ver doentes e a discutir doentes connosco. Com esse espírito, aliás, no hospital da Misericórdia, houve as eleições, e nomearam-me para procurar dinamizar. Então, com auxílio financeiro do laboratório, vieram professores catedráticos de Lisboa, Coimbra, Porto. As palestras eram, geralmente, mensais, às vezes duas vezes por mês.
O Norberto veio, mandou-me as coisas, e disse-me assim “o teu serviço está a funcionar muito bem. De maneira que, quando os internos forem obrigados a ir para o hospital regional passar um ano, eu vou indicar este hospital, de Guimarães”.
Sentiu-se orgulhoso pelo seu percurso?
Sim, mas custou-me muito. Eu nunca desliguei o telefone, nem de noite, nem de dia. Tenho contado quando fui a umas jornadas pediátricas dos hospitais do Norte e foi um colega que me levou. Chegamos aqui num sábado, às seis da tarde, e ele olhou e estavam treze mães com crianças à minha espera ali fora. “Vai ver isso? Eu não vejo crianças em casa!”. Eu assim: “e o que é que se há de fazer? Manda-se embora?”. Quando se criou o serviço de urgência, a coisa melhorou muito, mas foram uns anos… Eu tinha muito afeto pelas crianças e senti-me na obrigação. Com uma criança é muito difícil, está bem e passado uma ou duas horas pode estar doente. A criança é muito instável.
Sente que a comunidade reconhece essa sua dedicação?
Creio que sim. Ainda hoje fartam-se de me telefonar para eu ver crianças. Deixei o consultório, fui para casa, nem pus anúncio, nem nada, e começaram a vir.
Quando foi a última consulta que deu?
Dois meses antes de começar a pandemia.

Na altura havia poucos pediatras. Eu vi crianças do distrito de Vila Real, do distrito do Porto, Braga… Em Vila Real não havia pediatra. Nas férias, na Póvoa de Varzim, não havia, vinham cá. Tive uma vida de sacrifício durante um tempo. Agora a vida é muito calma. Antes faziam-se muitos domicílios, agora não se faz. Antes faziam-se domicílios em série, uma pessoa ficava extenuada.
Já tem outra opinião acerca de Guimarães, diferente da que tinha quando cá chegou?
É uma cidade que me encanta, os meus filhos nasceram cá todos, foi aqui que conheci a minha mulher, de maneira que tudo correu bem. E as condições modificaram-se muito.
“Se não vamos a congressos, se não lemos, se não dialogamos, não melhoramos.”
António Gama Brandão
Sendo a leitura uma das suas paixões, pergunto-lhe o que anda a ler?
Acabei de ler um dos melhores livros da minha vida, que é de uma escritora espanhola, um livro espantoso que até já estou a reler. Há livros que leio, como o “Memórias de Adriano”, que foi um grande imperador romano, de brasileiros clássicos gosto muito também. Livros de ciência e biografias, gosto muito de biografias, literárias ou artísticas. A minha mãe sendo de Avanca, em Estarreja, eu fiz lá a escola primária, e é onde nasceu o professor Egas Moniz. E eu ia para casa dele e ele ofereceu-me muitos livros e tenho a obra toda do Egas Moniz, na componente literária e também política.
Como ocupou os seus dias durante a pandemia?
Li menos, e isto esteve complicado. Eu lancei o desafio à minha mulher de lançarmos um livro em parceria, e passamos uns meses a escrevê-lo, e ele saiu em maio deste ano. Chama-se “Retratos e Conceitos”, de umas 15 ou 16 personalidades e falo sobre elas. Falo também muito sobre a criança, de como nasceu a Padiatria em Guimarães.
Depois, a minha mulher, no lionismo, atingiu os cargos mais elevados no país, e esteve presente em fóruns internacionais, e isso fez com que viajássemos muito, que é uma das nossas paixões. Também temos imagens de algumas dessas viagens que fazem parte do livro.
O que diria agora a quem estiver a iniciar o percurso como pediatra?
Estudar, cumprir os preceitos de ética e valorizar-se. Nunca deixar-se cair na rotina. Se não vamos a congressos, se não lemos, se não dialogamos, não melhoramos. E gostar da criança. O afeto é o segredo.
Antigamente não havia diferença da diferença de tratar do homem e da criança. O tratar a criança com afetividade é muito recente. E para a criança, por exemplo, não ter, como acontecia há uns anos, a mãe ou o pai durante um internamento, era um choque terrível.
Os estudos das consequências da falta de afetividade no tratamento das crianças comprovam atrasos no desenvolvimento e diferenças abissais entre as que têm afeto e as que são privadas disso.