Carlos Guimarães: “Este é um grito de revolta da classe médica”

O médico urologista vimaranense diz que a classe médica está cansada e prevê que, até 31 de dezembro, os serviços de saúde em Portugal piorem devido à escusa dos médicos em fazerem mais trabalho extraordinário. Uma recusa que considera compreensível devido à falta de reconhecimento que a classe tem sentido por parte do Governo.

© Eliseu Sampaio/ Mais Guimarães

Há 40 anos, Carlos Guimarães estava a entrar no curso de Medicina, onde erradamente se entra “mais pelas notas que pela vocação”, como conta. Depois de se tornar médico esteve no setor público 25 anos, tendo chegado à direção clínica do Hospital Senhora da Oliveira, e desde 2017 no hospital da Luz Guimarães, onde exerce atualmente essa função.

Carlos Guimarães, com a frontalidade que se conhece, em entrevista à Mais Guimarães, sobre um dos temas que marca a atualidade e mais preocupa, naturalmente, os portugueses.

O que se passa com a classe médica?

Quase que teria que ser feito um referendo à classe médica para saber o que se passa, porque não há uma pessoa que possa, por si só, definir com clareza o que se passa neste momento. O que se está a passar é algo de relativamente grave, preocupante, e que gera angústia nas pessoas e na própria classe médica. O que eu acho é que se chegou a um ponto de rotura, um ponto de bater com a mão na mesa e dizer “Eu já não estou mais para isto”.

E o “isto” é o quê, em concreto?

Os médicos foram-se apercebendo, ao longo do tempo, que não querem trabalhar mais nas condições em que se trabalha, nas menos boas ou más condições em que se trabalha, com a falta de reconhecimento por parte das estruturas hierárquicas superiores em relação ao trabalho que se faz, e da própria comunidade.

Todos eram heróis e receberam umas medalhas no tempo da pandemia, mas logo a seguir tudo mudou. Penso que uma grande parte da classe se cansou e que a outra parte entrou na onda. Acredito que muitos não estejam tão cansados quanto isso, nem tão em burnout quanto isso, mas aproveitaram a onda para fazer um grito de revolta da classe.

Esta onda terá algum vínculo político?

Parece-me que não e acredito que não. Se existir um vínculo político em relação a esta maré escura, não diria negra mas muito preocupante, acho que a minha preocupação se torna ainda maior. Pode até haver uma tentativa de aproveitamento político, porque os partidos políticos e a política aproveita-se das circunstâncias, mas eu acho que este movimento surge de uma forma absolutamente voluntária.

Surge de uma contestação de uma colega de Viana do Castelo que se insurge contra o trabalho extraordinário acima do limite legal das 150 horas que estão estipuladas para, na base disso poderem obter dividendos em termos de condições de trabalho e em termos salariais. Até porque, todos sabemos que a perda de vencimento nos últimos anos foi considerável para todos, e para a classe médica também.

Descreva-nos, como é a vida de um médico?

As pessoas, na generalidade, têm uma perceção errada sobre a vida de um médico. Falando dos cuidados primários de saúde, que
na nossa região estão praticamente todos alocados às USF B – Unidades de Saúde Familiar – os médicos têm objetivos, e têm que
ser cumpridos.

E trabalham, e fartam-se de trabalhar, e nem só em assuntos verdadeiramente clínicos, mas também muito sobrecarregados com assuntos burocráticos que os consomem muito. A vida de um médico depende muito da sua área de intervenção. Há áreas em que a vida é mais relaxada e áreas em que não, em que a vida de um médico é mais complicada.

Se falarmos, por exemplo, dos médicos que têm atividade nas áreas fulcrais de um serviço de urgência, como a cirurgia geral ou ortopedia, ou a medicina interna, sobretudo essa grande especialidade “mãe” que é a medicina interna, a vida de um internista não é uma vida boa, é uma vida de muito trabalho, de muito estudo, de muita dedicação e de algum sofrimento, do próprio e dos que o rodeiam, nomeadamente da família.

Se calhar, à volta disto é que as pessoas começaram a perceber e a refletir, querendo ter uma vida muito próxima da dos outros. Eu não quero trabalhar três noites por semana, não quero trabalhar dois ou três fins de semana por mês, não quero ter um fim-de semana livre de cinco em cinco semanas. Eu quero estar como as outras pessoas, quero estar com os meus filhos, estar com a minha família.

Muito provavelmente na roda deste pensamento se chegou a este ponto mais ou menos extremado, que é, eu querendo ter uma vida mais normal, então não quero fazer mais horas extraordinárias. Já cumpri o meu limite legal e agora não estou disposto a fazer mais.

 

“O QUE NÓS ASSISTIMOS NESTE MOMENTO É AOS MÉDICOS A DIZEREM QUE QUEREM VIVER DE UMA FORMA MAIS NORMAL”

 

Eu costumo dizer que quem quer ter uma vida muito normal, com um horário muito certinho, e o telefone a não tocar fora de horas, não vá para Medicina. Ou se for para Medicina, que vá para uma área técnica que lhe permita, efetivamente, ter esses padrões de
qualidade de vida.

As opções que se fazem agora podem não contemplar esse “espírito de missão” que pelo menos eu senti e que muitos da minha geração sentiam. Mas hoje, efetivamente, as pessoas procuram viver mais, e ter mais qualidade de vida.

E isso é compreensível?

Perfeitamente compreensível. Eu costumo dizer que viver é a tarefa mais importante do ser humano. Quando a gente se esgota não vivendo, acaba por morrer sem nunca ter vivido.

As urgências de 24 horas, por exemplo, são compatíveis com o bom exercício da profissão?

Não são, mas há pessoas com uma capacidade de trabalho extraordinária. Obviamente que no dia seguinte, a capacidade de auscultação, o nível de irritabilidade, o volume de litígio que pode acontecer entre o médico e o doente, a relação entre os dois pode piorar se as pessoas estão cansadas e com a paciência com níveis diminuídos. Se falarmos em especialidades técnicas, o desempenho será inequivocamente menor. Há muitos anos que se sabe que as intervenções cirúrgicas que são realizadas durante a madrugada, quando as pessoas estão cansadas, têm mais complicações.

© Eliseu Sampaio/ Mais Guimarães

E os Governos, ao longo dos anos, não estiveram sensíveis a esta transformação?

Há muitos anos que digo que o Sistema Nacional de Saúde funciona à custa dos baixos vencimentos dos profissionais de saúde. E falo dos médicos, dos enfermeiros, falo dos assistentes operacionais, que é uma classe fundamental e completamente ignorada. Se os vencimentos se equiparassem àquilo que se paga noutros países da Europa ou no mundo, obviamente que o SNS já teria implodido porque não haveria dinheiro só para os recursos humanos. E é isso que faz com que muitos façam as malas e partam para o estrangeiro. Vão porque ganham melhor, o trabalho deles é reconhecido, e terceiro porque têm boas condições de trabalho.

E isso é o que a gente pretende nas nossas profissões: qualidade de vida, condições de trabalho e remuneração condigna, e se não o encontramos aqui, saímos.

As novas gerações estão nas escolas de Medicina já com o objetivo de fazerem o curso, muitos deles a pensarem fazer já a especialização no estrangeiro, e outros fazendo a especialização cá, já têm a ideia de quando acabarem partirem para o estrangeiro. E tem mais uma agravante. Enquanto que, no meu tempo, pensávamos num emprego para a vida, hoje não se pensa da mesma forma. Hoje pensa-se na vida, mais do que no emprego para a vida. As pessoas fazem as malas e partem para terem uma vida melhor, e são raros os que regressam.

O nosso SNS não é suficiente bom para os profissionais?

Acho que o Serviço Nacional de Saúde saiu muito por cima e foi endeusado na era da pandemia devido à resposta que deu. E é relativamente bom e robusto quando comparado com os maus. Mas quando comparamos com os bons, dos países nórdicos, ou com o da Alemanha ou da França, revela-se um Serviço Nacional de Saúde obviamente insuficiente.

Lá há uma organização de trabalho notável, e por muito esforço que a gente faça em Portugal, não estou a ver como conseguiremos chegar ao nível de organização de alguns desses países. De qualquer das formas, quando não existem focos de pressão nos serviços de urgência e de emergência, eu acho que o Sistema Nacional de Saúde funciona razoavelmente bem, assim como os sistemas privados, que funcionam bem quando não têm pressão. Quando têm pressão também têm as mesmas debilidades que o SNS.

Defende uma maior articulação entre o SNS e os privados?

O Serviço Nacional de Saúde deveria ser exatamente isso, com verdadeiras parcerias em que todos sairiam beneficiados. Iria provavelmente provocar uma revolução muito maior nos privados do que nos públicos, porque os privados teriam que se adaptar a um nível de produtividade muito maior do que aquele que têm atualmente.

A ideia que passa, algumas vezes, é que o Serviço Nacional de Saúde é de borla, que não nos custa. No entanto, é investido ali muito dinheiro…

O de borla leva-nos a outra discussão. Acho que o que é de borla não serve para nada, porque a gratuitidade leva a um exagero ou até, de certa forma, a um estímulo do consumo. As taxas moderadoras serviam exatamente para moderar o consumo e a acessibilidade. A partir do momento em que desaparecem as taxas moderadoras vê-se, e assiste-se muitas vezes, a um fenómeno que não se assistia anteriormente.

Pessoas que têm acesso a bons sub-sistemas de saúde, um bom seguro para o qual vão deduzindo durante a sua carreia contributiva que, a partir do momento em que aparece a gratuitidade total, acabam por, passando pelo centro de saúde e pelo médico de família, procurar usufruir gratuitamente desses cuidados. E isso gera um volume maior de trabalho para os médicos de medicina geral e familiar que estavam isentados desse trabalho quando havia co-pagamento.

Temos um outro problema que tem a ver com a imigração. Pessoas que vêm a Portugal ter cuidados de saúde gratuitos ou muito económicos…

É um facto. Isso vê-se não só no Serviço Nacional de Saúde como no setor privado, onde trabalho atualmente. No grupo Luz são atendidos anualmente doentes de mais de 100 nacionalidades diferentes. Os seguros de saúde em Portugal, para os portugueses, podem ser dispendiosos, mas para qualquer pessoa que venha da França, da Alemanha, do Brasil, dos Estados Unidos ou da Inglaterra, é quase de borla. E os que fazem seguros de saúde desfrutam do serviço, e os que não fazem recorrem ao SNS.

Neste momento até as maternidades têm tido um crescimento significativo em número de partos, devido exatamente aos emigrantes, nomeadamente aos brasileiros que neste momento são muitos, e são necessários, diga-se. Se não fossem não teriam emprego.

E esta situação é relativamente injusta. É que qualquer emigrante que chegue a Portugal em poucos dias tem um número de utente, a acessibilidade ao número de utente é extremamente facilitada. E tendo um número de utente acede ao Serviço Nacional de Saúde e a todos os serviços como todos os outros. Ou seja, a contribuição que fez foi zero, e poucas semanas depois pode estar a desfrutar do Sistema Nacional de Saúde na sua plenitude.

© Eliseu Sampaio/ Mais Guimarães

Que opinião tem acerca da criação das Unidades Locais de Saúde?

Na minha opinião não vai mudar nada. Muda apenas o modelo de gestão, que passa a ser diferente do que é atualmente. A reforma do SNS passa por atribuir mais médicos de família às pessoas, as que não têm passarem a ter, evitando que tenham de acampar à entrada dos Centros de Saúde, passa por proporcionar uma redução das listas de espera cirúrgicas e de especialidade. Isto é que são reformas na saúde, que vai oferecer aos utentes, aos cidadãos, melhores cuidados, mais rápidos, mais fáceis e mais eficientes.

Na minha opinião, as ULS vão gerar uma grande confusão e não vão trazer grandes benefícios. E mais, poderão trazer ainda alguns constrangimentos, mesmo do ponto de vista salarial e do ponto de vista da carreira. É que, ao serem criadas as Unidades Locais de Saúde, os cuidados de saúde primários passam a integrar, a fazer parte da mesma instituição, e como toda a gente sabe, o regime remuneratório nas USF`s é muito diferente do regime remuneratório das carreiras hospitalares.

No fundo, vamos ter na mesma empresa, na mesma entidade, um recém especialista em Medicina Geral e Familiar a ganhar o dobro de um chefe de serviço hospitalar. Teremos provavelmente especialistas com 10 anos de carreira a ganharem metade de um médico de Medicina Geral e Familiar (MGF), e eu não sei como se vai fazer esta articulação em termos de vencimento. Não estou a dizer que os médicos de MGF ganham demais, mas não entendo esta assimetria tão grande.

Mas prevê-se a entrada em vigor deste modelo em breve. É possível?

Acho que não. Ou se chega a acordos salariais ou vai haver depois aquilo que ninguém deseja, que são as guerras internas dentro da
classe, de médicos contra médicos. A realidade, mostra-me que vão haver constrangimentos.

Em Portugal há médicos suficientes, ou é necessário facilitar-se o acesso à medicina?

Essa pergunta é muito difícil de responder. A maior parte dos estudos apontam que sim, que há médicos suficientes para atender a população que temos. Um dos problemas que se põe neste momento em relação ao exercício da medicina tem a ver com a responsabilização, com a informação que tem de ser prestada. Tem a ver com os sistemas de informação que todos somos obrigados a usar e que, na verdade, não vieram ajudar muito os médicos e os enfermeiros.

A carga de trabalho que os enfermeiros têm que ter, ainda mais que os médicos, nomeadamente para registos, esse tempo, há 30 anos, era dedicado ao doente. Hoje, as pessoas têm que olhar mais para o ecrã e para o teclado do que para a barriga dos doentes. O registo clínico, sabemos que é fundamental, mas rouba-nos imenso tempo.

© Eliseu Sampaio/ Mais Guimarães

Deveria facilitar-se esse acesso a quem tenha aptidões para a profissão?

Há muito tempo que defendo que as pessoas, obviamente, deveriam candidatar-se com uma nota mínima a um curso de Medicina, às universidades, e deveriam passar por um processo de seleção com entrevistas, avaliação de aptidões psíquicas, capacidade de diálogo, de trabalho em equipa e de transmissão e absorção de informação.

Há toda uma série de aplicativos pessoais que o médico tem que ter para ser um bom médico, que nada disso é averiguado num 18,4. Até podemos ter um 18,4 e o médico ser autista, por exemplo. Existem muitos médicos com estigma de autismo, e alguns mesmo com estigmas de esquizofrenia. Não tenho dúvidas nenhumas de que andam aí excelentes médicos de 16 e 17 que não chegaram a Medicina. E vemos muitas vezes que as grandes notas de entrada na universidade não correspondem ao nível de desempenho.

 

“Nós não estamos a viver uma greve, estamos a viver escusas, recusas de trabalho extraordinário.”

 

E há vontade em contornar isso?

Acho que não. Em Portugal quase tudo se mede por números. Quando vemos as avaliações de desempenho do SIADAP (sistema integrado de gestão e avaliação do desempenho na Administração Pública), por exemplo, em que toda a gente sabe que é uma coisa ridícula, que não corresponde à realidade, para além das cotas e tudo mais, é algo que só existe porque tudo tem de obedecer a uma métrica.

Há muito tempo que digo que vai ser cada vez mais difícil nós termos médicos que queiram ver doentes. Na medicina exige-se cada vez mais uma subespecialização em áreas muito específicas. Na verdade, já agora, se eu quiser um cardiologista que me veja de princípio ao fim, já tenho poucos. Uns vão dizer eu só faço pacing, eu só faço isto ou só faço aquilo, e vamos ter cada vez mais dificuldade em termos médicos que nos vejam do princípio ao fim. E onde é que eu acho que isto vai acabar: Nos médicos de Medicina Geral e Familiar, que vão ter de fazer esse trabalho, de verificar e orientar devidamente o doente.

Voltando ao início da conversa, como será possível o Governo e a classe médica se entenderem?

Eu acho que até 31 de dezembro isso não vai acontecer, e por uma razão muito simples. Estão a decorrer negociações entre o Governo e o sindicato mas na verdade nós não estamos a viver uma greve, estamos a viver escusas, recusas de trabalho extraordinário. Pessoas que disseram eu estou cansado, eu já fiz 300 horas e não quero fazer mais este ano, porque a lei só me obrigava a fazer 150.

Mesmo que haja um acordo sindical, as pessoas que estão cansadas, não é porque vão ter o acordo sindical, a executar a partir de janeiro, que vão deixar de estar cansadas. O problema que existe é um problema muito sério que não vai ser resolvido. Só se houver uma conciliação entre a classe, nomeadamente com o envolvimento da Ordem dos Médicos fazendo um apelo para aqueles que ainda possam fazer um esforço até ao final do ano, se empenhem do ponto de vista ético e num espírito de missão a resolver os problemas das pessoas. As ordens que foram sendo esvaziadas, não lhes sendo reconhecidas as competências que deveriam ser reconhecidas.

Se houver este entendimento global talvez nós tenhamos um inverno menos mau. Senão vamos ter todos um inverno mau e os privados não vão poder ajudar, até porque não estão preparados para terem uma avalanche muito grande de utentes que tiverem as portas fechadas no público.

Um problema que perdurará?

Não perdurará porque em janeiro os médicos ficam com zero horas extraordinárias. Mas tem de haver um entendimento porque em março ou abril, ou até junho, muitos já estarão a entregar as escusas. Se agora o fenómeno aconteceu em três meses, nos últimos três meses do ano, para o ano vai acontecer em seis ou sete meses.

 

 

PUBLICIDADE

Arcol

Partilhar

PUBLICIDADE

Ribeiro & Ribeiro
Instagram

JORNAL

Tem alguma ideia ou projeto?

Websites - Lojas Online - Marketing Digital - Gestão de Redes Sociais

MAIS EM GUIMARÃES