João Torrinha diz que “Ninguém está autorizado a virar a cara à luta” pelos ideais de Abril

O presidente da Assembleia Municipal, José João Torrinha interveio na reta final da Sessão Solene comemorativa dos 50 anos do 25 de abril de 1974, referindo que a luta pelos ideais de abril, Democracia e Liberdade, "está mais viva do que nunca e ninguém está autorizado a virar-lhe a cara".

© Eliseu Sampaio / Mais Guimarães

Esta intervenção começa sob a forma de uma confissão: de todos os discursos feitos por ocasião do 25 de abril, este foi o que me foi mais difícil de começar a escrever. A dificuldade não tem a ver com o número de anos que comemoramos, pois que a efeméride redonda que hoje se completa em nada acrescenta à responsabilidade da tarefa. Também não resulta da sua repetição, já que o tema é tão rico que não existe sequer o risco de repisarmos caminhos já trilhados.

A dificuldade advém sim do facto de, no momento atual, em Portugal e no mundo, termos de lutar contra muitas coisas, mas acima de tudo contra o nosso próprio desânimo. Este pode bem ser um problema geracional. Para quem nasceu por alturas da nossa revolução, vivemos tempos que interpelam algumas crenças que nos acompanharam nos anos em que formamos a nossa personalidade.

Filhos de quem viveu nos longos anos da ditadura, crescemos em plena guerra fria, cujo fim assistimos sob a promessa de que a democratização era um processo tão belo como inevitável. Se para alguns o século XX terminou com a queda do muro, mas o XXI só se iniciou com o ataque às torres gémeas, naquele limbo entre as duas datas, como lhe chamou Pedro Mexia, vivemos na ilusão de que o processo histórico era uma caminhada imparável rumo a dias melhores.

Os últimos anos dedicaram-se a ir dando sucessivos golpes nessa ilusão, empurrando-nos para reflexões mais pessimistas. Um pouco por todo o mundo vamos assistindo a inesperados retrocessos civilizacionais, ao recrudescimento de sentimentos que julgávamos ultrapassados, ao ressurgimento de ideologias que pensávamos definitivamente confinadas aos livros de história, tudo condimentado com a guerra de volta à Europa. Se a civilização é como uma camada fina de gelo sob um fundo oceano de caos e trevas, como diz Werner Herzog, será que tínhamos vivido apenas um momento anormalmente feliz da humanidade e nos apressamos para regressar ao velho e tenebroso normal?

© Eliseu Sampaio / Mais Guimarães

É verdade que a geração de que falo não viveu a ditadura, mas foi como se tivesse vivido, pois que bebeu avidamente dos seus pais os tempos exaltantes da luta pela liberdade e do processo de consolidação da nossa democracia. É por isso particularmente penoso constatar que, volvidos cinquenta anos, haja muitos para quem tudo o que foi conquistado possa ser posto em causa num abrir fechar de olhos.

Haverá muitas explicações para estes tempos que vivemos, em Portugal e no mundo. Esse é um debate na ordem do dia, nesta época que alguns denominaram de “era do tédio”. Um tempo em que, do alto do conforto de uma sociedade que, apesar dos seus múltiplos problemas, vive comparativamente tempos melhores do que aqueles que vê no retrovisor, e que por isso se pode dar ao luxo de responder ao aborrecimento com gestos que se arriscam a pôr tudo em causa.

Pior. Esses gestos são vistos por muitos outros com uma preocupante indiferença. Este é um tempo em que é efetivamente fácil, demasiado fácil, ceder a essa indiferença. Indiferença ao padecimento causado ao nosso próximo, indiferença aos perigos que nos rodeiam e indiferença relativamente a todos os que não professam as nossas ideias.

Ora, este não é o tempo de ceder a essa inação. Pelo contrário: esta é a altura de agir vigorosamente em defesa do que nos é mais caro: a democracia e a liberdade conquistada a duras penas.

Nessa extraordinária alegoria que é o romance, “A Peste”, tão atual que parece ter sido escrita ontem, Camus resumia as atitudes perante os perigos de que falava: há quem lute; quem fuja; quem atue individualmente; quem lucre; mas sobra a maioria que opta pela indiferença.

Ora, a indiferença é um luxo a que não nos podemos dar.

© Eliseu Sampaio / Mais Guimarães

Se o fascismo que caiu a 25 de abril de 1974 representa, na sua raiz, o medo da liberdade, não podemos recear o combate contra todos aqueles que tentam reeditar esse medo, paradoxalmente e muitas vezes sob a bandeira da própria liberdade.

Liberdade: eis um conceito que também pode ser destruído pelo seu abastardamento. Porque é verdade que, nos dias de hoje, em muitos discursos se usa e abusa dessa palavra para promover algo bem diferente: o individualismo. Mesmo figuras insuspeitas como o Papa Bento XVI o reconheceram quando alertava para o perigo de erigirmos como critério supremo para as nossas ações o indivíduo e os seus desejos. “Sob a aparência da liberdade, construímos uma prisão para cada um, que separa as pessoas umas das outras fechando cada um de nós dentro do seu próprio ego”, disse ele.

Liberdade não é isso. Liberdade não é, não pode ser egoísmo. ”O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas cobardias do quotidiano, tudo isto contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for suscetível de servir os nossos interesses”, uma frase que adoraria ter escrito, mas que foi brilhantemente imaginada por José Saramago.

Liberdade não pode ser confundida com uma forma de estar na vida em que eu me preocupo apenas comigo e com os meus interesses. Uma sociedade em que todos vivem numa corrida desenfreada e a solo, procurando ultrapassar o vizinho na próxima curva, não é uma sociedade verdadeiramente livre, ao contrário do que possa parecer. Uma sociedade que erige a meritocracia como uma espécie de novo Deus a venerar por todos não é uma sociedade justa e por isso não é verdadeiramente livre.

Não é justa porque ignora a própria condição de partida de cada um de nós, todos iguais em direitos, mas diferentes nas capacidades inatas ou adquiridas ao longo de uma vida, ela própria pejada de desigualdade. A crença nessa meritocracia perfeita cega-nos no entendimento de que fazemos parte de um destino comum e “deixa pouco espaço para a solidariedade que pode advir da reflexão sobre a aleatoriedade dos nossos talentos e da nossa fortuna. É isso que faz com que o mérito seja uma espécie de tirania ou de regime injusto”, como escreveu Michael Sandel.

Uma sociedade assim, acaba por fazer os pobres acreditarem que a sua condição é só e apenas culpa sua, quando bem sabemos que não é assim, sendo que, paradoxalmente essa sua consciência acaba por levá-los à defesa de propostas que, no final do dia, apenas beneficiam os que mais têm e pouco ou mesmo nada os ajudam.

© Eliseu Sampaio / Mais Guimarães

Minhas senhoras e meus senhores.

Comemorar Abril é celebrar aqueles que não se resignaram. É festejar homens e mulheres que antes de pensarem em si, pensaram nos outros. Arriscando tudo. O seu emprego, a sua liberdade ou até a sua própria vida.

Se eles não se resignaram, que direito temos nós à indiferença e ao tédio de que falávamos? A resposta é simples: não temos esse direito. Isto se nos queremos mesmo identificar como democratas, como cidadãos de corpo inteiro que se preocupam com o bem-estar do seu próximo e que acreditam que é numa sociedade livre, justa, que não deixa ninguém para trás que querem viver.

A luta por esses ideais está mais viva do que nunca e ninguém está autorizado a virar-lhe a cara.

Nos festejos dos cinquenta anos do 25 de abril cabem as palestras, as homenagens, os documentários, as exposições, as sessões solenes, os desfiles, a festa. Mas aquele ato primordial de não ceder um milímetro aos que querem questionar os valores conquistados da solidariedade, da democracia e da liberdade, de todas as liberdades conquistadas, vale mais do que todas as proclamações.

Defender abril, 50 anos depois, é sacudir o pessimismo, arregaçar as mangas e estar na linha da frente na defesa do seu legado. E se assim é, terminar este discurso é muito mais fácil do que começa-lo, pois que ao desânimo e à descrença respondemos com alegria e determinação. Porque, como dizia Martin Luther King Jr. “a nossa própria sobrevivência depende da nossa capacidade de estarmos acordados, de nos ajustarmos a novas ideias, de permanecermos vigilantes e de enfrentarmos o desafio da mudança.”

Viva o 25 de abril.

Viva a democracia.

Viva a liberdade.

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