Não era fácil a vida em Guimarães no ano da des(graça) de 1918, 104 anos atrás, politicamente marcada pelo triunfo do sidonismo e da denominada “Nova República” de cariz antiparlamentar e presidencialista, que intramuros se traduziu pela perseguição à gestão republicana e aos seus colaboradores. Porém, o pior de tudo estaria nas condições de vida dessa época, subsequente dos tempos de guerra e pandemias.

Com efeito, embora a paz tenha chegado nos inícios de novembro com o armistício, levando a cidade a rejubilar com manifestações de rua, casas embandeiradas, repiques de sinos e música pela Nova Filarmónica Vimaranense, o ano de 1918 foi desgraçadamente vivido em estado de desgraça(s).
Ora, uma dessas desgraças ocorreria exatamente a 09 de abril de 1918. De facto, data desse dia a fatídica Batalha de La Lys, travada na Flandres, na qual lutaram milhares de homens do Corpo Expedicionário Português (CEP), entre os quais se integravam os militares do Regimento de Infantaria nº. 20, aquartelado no Paço dos Duques, que seriam integrados na 2ª. Divisão do CEP e 4ª. Brigada: a denominada “Brigada do Minho”. Uma brigada militarmente prestigiada, constituída por infantaria 8 e 29 de Braga, infantaria 3 de Viana do Castelo e infantaria 20 de Guimarães, que além da sua unidade orgânica possuía também uma forte unidade animista, dotada de intrínsecos laços sinérgicos, como se constata na sua canção:
“IV Brigada, o Minho em nós confia
Seu nome honrado entregou em nossas mãos
E seu nome, que soou, de sempre, a valentia
Aos quatro batalhões, – unidos como irmãos
Tudo a mesma Família – há de servir de guia”.

Porém e apesar destes fortes laços afetivos e regionais que a todos prendia , La Lys foi uma funesta batalha para a Brigada do Minho e para infantaria 20, em particular. Efetivamente, “La Lys resultou numa verdadeira tragédia humana para os 21 oficiais e 725 praças de Infantaria nº. 20, que num só dia viu o seu número de efetivos reduzido para 300 homens” – escreve o major Dorbalino Martins no seu “Estudo de pesquisa sobre a intervenção portuguesa na 1ª. Guerra Mundial (1914-1918), na Flandres”.
Uma pesada derrota, que de acordo com um relatório do general Gomes da Costa teria causado ao CEP, na frente da Flandres, a morte de 2288 homens, dos quais 87 oficiais, enquanto os feridos atingiram 5232 militares, entre os quais 332 oficiais; de igual modo, um grande número de prisioneiros que ascenderam a 14601 homens, 238 dos quais desaparecidos. Desastre que porventura apenas fora superado em Alcácer Quibir, em 1578.
Contudo, não foi por falta de valentia que infantaria 20 cederia, eles que dias antes, a 12 de março, haviam rechaçado o inimigo, o que lhes valera um louvor por parte do Quartel General. Fora isso sim e fundamentalmente, uma derrota decorrente da falta de meios e apoios, mas também resultante do estado de exaustão das nossas tropas, que na altura aguardavam ansiosamente a sua substituição, protelada por falta de barcos de transporte. E, claro, devido à matreirice das tropas alemãs, que em supremacia numérica e em armamento pesado, atacaram impiedosamente e em força, aproveitando o desânimo psicológico dos portugueses e a falta de reforços, bem como o desguarnecimento dos nossos flancos, motivado pelo recuo de posições das tropas britânicas.
Aliás, uma derrota perdida com bravura e valentia, como o reconheceria com galhardia o exército inimigo, que nas campas dos portugueses inscreveram em pedaços de madeira, respeitosamente: “Aqui jaz um valente camarada português. Militares portugueses que atualmente, na sua maioria, estão sepultados no cemitério militar português de Richebourg, em França”.
Este reconhecimento e louvor à Brigada do Minho seria posteriormente corroborado por vários testemunhos. Por exemplo, na carta de Vasco de Carvalho, do Estado Maior da 2ª. Divisão, dirigida ao coronel Adolfo Almeida Barbosa, datada de 3 de dezembro de 1922:
“Sacrificou-se como nenhuma outra, porque nenhuma outra Brigada teve a permanência continuada em 1ª. linha o tempo que ela suportou.
Por isso, chegou a 09 de abril cheia de fadiga, desfalcada, absolutamente necessitada de imediato repouso e urgente reconstituição.
Tendo-lhe sido pedido mais algum tempo de sacrifício, ficou na linha. Foi assim que o inimigo a foi encontrar, guarnecendo o sector Fauquissart.
De modo como ela se comportou nessa tremenda batalha, V.Exª. meu coronel, que então a comandava, melhor que eu poderá falar.
Se todos fizeram o que puderam e resistiram, como lhes foi possível, de justiça é dizer-se que de todas as Brigadas da Divisão a do Minho foi a única, que manobrou e combateu como uma unidade de batalha (…)
Foi também e talvez por isso a que mais sofreu. As suas enormes perdas darão ao historiador ideia do seu tenaz combater”,
Mas para além das perdas humanas, a guerra traria ainda a especulação e a fome. Com efeito, a subida de preços dos géneros de primeira necessidade, como o petróleo, milho, azeite e o feijão, provocariam várias movimentações operárias de descontentamento e de protesto em Guimarães.
Além disso e fazendo jus à máxima que um mal nunca vem só, cidade padeceria ainda com epidemias e doenças, em especial o tifo exantemático. De tal forma que, a 24 de julho, uma procissão saiu da Igreja de S. Francisco, acompanhada de muito povo, implorando o termo da guerra e o fim da doença, manifestação religiosa que seria antecedida por preces e um sermão do Padre Gaspar Roriz.
Contudo e como não bastasse, a doença voltaria em força, especialmente no outono, com um surto de gripe broncopneumónica, que ficaria conhecida como a gripe espanhola, pandemia tremendamente letal, que causaria imensos óbitos na cidade, no país e no mundo.
Porém, o nosso propósito é fundamentalmente recordar o Regimento de Infantaria 20, neste centenário da Batalha de La Lys. Efetivamente, criado por carta régia de 5 de novembro de 1884 (o ano de ouro de Guimarães), o regimento receberia em 1907 a denominação de “Regimento de Infantaria nº. 20 do Infante D. Manuel” e era de facto, no dealbar do século XX, a “menina dos olhos” dos vimaranenses, quer nos momentos de festa quer nos momentos de tristeza. De facto, este regimento aquartelado no “ casarão negro e em osso”, por onde passaria o alferes Raul Brandão, anos antes e que aí, posteriormente, exerceria funções de bibliotecário em 1918/1919, após aposentação, era orgulhosamente querido e acarinhado pelas gentes de Guimarães. Prova-o, desde logo, a despedida na estação do caminho de ferro, em 22 de maio de 1917, noticiada pelo Comércio de Guimarães, quando as tropas de infantaria 20 rumaram, via Lisboa, ao porto de Brest, em França:
“A partida destes homens, na sua totalidade tirados à lavoura, ao comércio e à indústria, como era de esperar, encheu de emoção cidade de D. Afonso Henriques. Durante horas e horas Guimarães parecia mergulhada nas trevas dum grande luto, duma grande dor. Para cima de vinte mil pessoas assistiram à partida”.

Todavia e entrementes, ao longo dos anos, suceder-se-iam as homenagens, em complemento das condecorações militares com a Cruz de Guerra de 1ª. Classe, atribuídas ao regimento pelas autoridades militares, em 21 de abril de 1923 e 31 de março de 1926, atendendo “aos brilhantes feitos praticados nos campos de batalha e serviços relevantes prestados”, em especial na defesa do sector de Fauquissart, na batalha de La Lys.
Ademais, também Guimarães homenagearia a sua infantaria 20. Deste modo, nas Gualterianas de 1924, um cortejo evocativo entre o Toural e o Paço dos Duques seria organizado, descerrando-se neste local uma lápide alusiva. Outrossim, no cemitério da Atouguia seria erigido um monumento aos mortos em combate, que também se encontram recordados na toponímia da cidade, quer na Rua dos Combatentes da Grande Guerra quer na Rua Capitão Alfredo Guimarães, um herói vimaranense falecido em combate integrado na “Brigada do Minho” (ver texto em separado).
Mas, La Lys seria ainda evocada teatralmente na cidade berço. Com efeito, na última cena do episódio dramático em 2 atos intitulado “O Herói Minhoto”, que seria representado no dia 10 de abril de 1922 no Teatro D. Afonso Henriques, pelos sargentos de infantaria nº. 20, em benefício dos órfãos da guerra, esta infausta batalha seria recordada. Respigamos dessa cena breves passagens, cujo texto é de autoria do Padre Gaspar Roriz.
“Nós vimos lá cair, prostrados no chão,
depois da dor atroz, nas vascas da agonia
alguns nossos irmãos e o nosso Capitão
heroico e valoroso, o Capitão Faria!
Era em Nove de Abril!…Que luta, que pavor!
Oh! Deve ser assim o báratro infernal
Pairava sobre nós a morte, o luto, a dor
Mas nós, inda uma voz, honramos Portugal”.
Uma passagem na qual se alude ao falecimento do capitão José Vieira de Faria, de 31 anos, figura importante da sociedade vimaranense, que já havia participado em duas campanhas africanas.
Porém, vários são os nomes de infantaria 20 que perderam a vida neste confronto e imensos os feridos e prisioneiros resultantes desta batalha:
“Eu estava em Fauquissart … Caíram um a um,
feridos mortalmente os nobres camaradas.
Olhei, tornei a olhar: nenhum, não vi nenhum
Só eu estava exposto à chuva das granadas.
(…)
Eis o que foi La Lys: um gesto soberano
que a força subjugou – um trágico revés,
no qual se afirmou o brio lusitano,
a honra e o valor do povo português!
Eu creio que há de vir o dia da Vitória!
Oh, sim, hemos de ouvir um hino triunfal!
Veremos a figura austera da História
c’roando a fronte altiva do velho Portugal.

Todavia e não obstante a sua coragem e bravura, o RI 20 seria extinto, por ordens da ditadura militar, que pôs termo à I República. As razões terão sido obviamente políticas e provavelmente assentarão em duas ocorrências significativas: a primeira decorrente da recusa do regimento em aderir ao 28 de maio de 1926; e, a segunda, resultante da sua rebelião contra a ditadura militar, em fevereiro de 1927, que terminaria com a derrota dos revoltosos.
Com efeito, numa página manuscrita do diário do alferes Silvestre José Barreira (1876-1929), um dos sobreviventes de La Lys (pelo facto de na altura ter sido evacuado por doença), que nos foi facultado pelo seu neto Silvestre Barreira, parece indiciar claramente essas motivações políticas:
“28 de maio:
Dia em que teve início um movimento revolucionário militar, chefiado pelo general Gomes da Costa que para tal veio para Braga em 27. Fui convidado para entrar neste movimento na noite de 27; recusei-me, bem como todos os oficiais de infª. 20, recusa que todos mantivemos até final exceto o cap. Machado, tenente Matos e alferes Pinheiro, que por motivos da última hora foram levados a aderir”.
Coincidências ou não, o que é certo é que o RI 20 foi politicamente extinto, ainda que a pretexto de se visar o restauro e a devolução da dignidade ao Paço dos Duques e ao espaço épico envolvente do “altar da Pátria”, sito à Colina Sagrada. No entanto e bom grado essa reabilitação ter sido consumada, o RI 20 jamais seria devolvido à cidade, que agora só o pode recordar em fotos e na sua bandeira, que fora benzida na Igreja de S. Francisco em abril de 1886. Bandeira que andava perdida, mas que graças à ação de Carlos Sousa e João Lopes seria recuperada.
Deste modo, no próximo dia 9 de abril, a Casa da Memória vai evocar La Lys e infantaria 20, em sessão pública a decorrer pelas 18 horas. Um evocação que contará com uma exposição alusiva e com a presença de Carlos Sousa e do ex-tenente João Lopes, que prometem novas revelações sobre La Lys, a Brigada do Minho e especialmente sobre “o 20 de Guimarães na Primeira Grande Guerra (1914-1918)”, assim se intitula o artigo de Carlos Sousa publicado no Boletim de Trabalhos Históricos (série III, vol. IV) de 2015, que, ao que consta, deverá ser aditado e reformulado.
Quiçá, porque há coisas que se extinguem mas permanecem na memória, como os dinossauros, não tanto por serem grandes, mas porque ostentam grandeza …
