Padre Guilherme: A história do DJ vimaranense que se transformou numa estrela
O Padre Guilherme é um fenómeno, e tem juntado multidões por onde passa. Participar nas Jornadas Mundiais da Juventude foi um dos pontos altos de uma carreira que ainda está a começar. Esta é uma nova forma de levar a igreja a novos públicos, diz o padre DJ à Mais Guimarães.
Padre Guilherme esteve em Guimarães, na sua terra natal, a celebrar com milhares de pessoas os seus 25 anos de sacerdócio num
sunset na Penha, dinamizado pela Irmandade.
O que representou aquele domingo na Penha?
Foi uma oportunidade, no fundo, de celebrar a fé, a alegria de ser padre na terra onde nasci e que me diz muito. Eu diria que geralmente não ando muito por Guimarães, quando estou é na casa dos meus pais e da minha família, e quando possível para ir ver o Vitória.
Nestes 25 anos de padre fui trabalhando e servindo outras comunidades como Braga, Póvoa de Lanhoso e agora Póvoa de Varzim, fora de Guimarães. O contacto com a cidade não era muito e eu fiquei naturalmente de coração cheio por tanta gente ter estado presente.
Esperava aquela receptividade das pessoas na Penha?
Não, de modo algum. Como foi a primeira vez para mim, para a Irmandade da Penha, acho que foi no bom sentido uma surpresa. Se eu estava à espera que as pessoas viessem até pelo sítio sim, mas a multidão que apareceu, como se costuma dizer, “nem nas melhores expectativas”.
A preparação deste espetáculo foi diferente de outros ou é mais ou menos o espetáculo que já tem pré-definido?
Na preparação deste espetáculo, primeiro temos que perceber e respeitar o local, por isso tudo muda. Com as luzes, por exemplo, não poderíamos colocar ecrãs em frente ao santuário, não íamos colocar barras de luzes para ferir a beleza daquele espaço.
Até a escolha das músicas foi adequada ao local, com uma vertente mais religiosa. Claro que tinha de ter algo presente ligado com o Vitória, porque não só me diz muito a mim mas a qualquer cidadão de Guimarães. Mesmo que não seja vitoriano, sei que qualquer vimaranense tem um respeito enorme pela instituição que é o Vitória.
“Acho que com a música consigo levar a minha fé mais longe”
Há ali alguns momentos em que tem o cuidado de passar algumas mensagens bastante fortes do Papa Francisco. Estes espetáculos são uma oportunidade de chamar os jovens a refletirem sobre a posição da igreja e a importância que pode ter no mundo?
Eu acho que são também um desafio para que cada um de nós use os seus talentos ao serviço dos outros. Eu, sendo padre, poderia estar naturalmente confinado, por assim dizer, à missa dominical e ao serviço normal da paróquia. Mas acho que com a música consigo levar a minha fé mais longe.
Naturalmente para este contexto há uma linguagem eletrónica que tem de ser trabalhada, em que as coisas, salvo algumas exceções, não estão feitas. É um trabalho demorado porque implica recriar tudo numa linguagem diferente da que é a linguagem habitual da igreja. Mas com ela é possível chegar a outros locais onde a igreja não chegaria. Portanto, tem tudo a ver com a linguagem usada para passar a mensagem.
É algo que vai querer continuar a fazer junto deste seu público?
Sem dúvida, e isto não aconteceu por ser no Santuário da Penha. Em Ibiza, algumas músicas que passaram no Santuário, com mensagens fortes, passaram também lá. Portanto, isto é algo que faz parte da minha identidade como DJ.
Nos últimos tempos, para além dessa atuação em Ibiza, há outros momentos que destaque?
É difícil destacar. Aconteceu algo de único na Torre dos Clérigos, com vídeo-mapping, e foi a primeira vez que tive a oportunidade de trabalhar nesse tipo de espetáculo, não apenas com as luzes tradicionais mas também com os lasers e o vídeo-mapping. Foi um espetáculo fantástico do primeiro ao último minuto, com o público na cidade do Porto a bater palmas, a cantar, a dançar e a agradecer do princípio ao fim. Foi um espetáculo, de facto, que me tocou o coração.
Mesmo nestas festas mais tradicionais, o que me toca e o que eu destaco, e que é algo anormal, é o facto de ter gente de todas as idades. Geralmente a música eletrónica tem um nicho. Aqui há desde crianças a adolescentes, jovens, adultos e idosos. Os idosos muitos deles a dançar, a pôr as mãos no peito e a erguer as mãos. É uma coisa que me tem surpreendido muito pela positiva.
Quando o projeto começou, foi com a ideia de levar a mensagem de outra forma até aos jovens. Aquilo que eu vou vendo, e na Penha também uma vez mais aconteceu isso, é que, neste caso, a música eletrónica consegue ser bem mais transversal.
“As pessoas que vêm assistir à eucaristia apenas a pensar que vão ver alguma coisa de diferente saem desiludidas”
A participação nas Jornadas Mundiais da Juventude foi uma viragem no projeto?
O que as jornadas vieram fazer foi, dada a responsabilidade que era tocar para toda aquela gente de todo o mundo, obrigar a trabalhar mais a própria música e a criar. Portanto, até às jornadas, aquilo que fazia e que muitas vezes faz um DJ é um trabalho de ouvir, investigar e procurar.
Com as jornadas foi mais do que isso. Já não foi pesquisar o que existe mas foi criar de novo. E a grande mudança não tem apenas a ver com a presença nas jornadas, mas o trabalho que foi feito para aqueles 30 minutos ou era original ou levou uma roupagem minha, própria e única para aquele evento, pensada precisamente ao nível da força e do ritmo para o acordar.
Queria que não fosse algo demasiado forte ou demasiado underground, mas que fosse mais suave e mais calmo na linguagem eletrónica. Graças a isso também fui conhecendo outros produtores que se juntaram a mim, e hoje tenho comigo uma equipa não tanto à procura do que existe, mas a criar algo único e novo.
Conciliar este novo mundo que surgiu para si com o exercício normal das suas funções nas paróquias é ainda possível?
Aquilo para que a Igreja me chamou foi para ser pároco de duas comunidades e militar do exército. Portanto, eu nunca poderia chegar junto do meu bispo e dizer que iria deixar de ser padre, isso nunca poderia partir de mim.
Mas ainda é possível conciliar esses mundos neste momento?
O grande segredo é eu preocupar-me o menos possível com as questões técnicas. Por isso tenho uma agência, um manager, tenho uma equipa e quando eu chego tenho praticamente tudo pronto. Se for preciso, eles ficam a dormir e eu regresso às paróquias no final. Eu acho que tem sido possível conciliar por duas razões: Uma é a equipa que está na estrada comigo, que vamos afinando para que eu tenha o mínimo de preocupações e que me libertam mais para a performance como DJ para chegar lá, tocar e não me preocupar com mais nada.
A outra é, e também com apoio do Sr. Arcebispo, eu ter outro sacerdote comigo nas minhas paróquias. Numa ou noutra ausência, o padre Manuel também me ajuda e auxilia. E para as paróquias isso é bom porque há uma continuidade e ajuda a manter e a conciliar estas duas vertentes.
Nas igrejas quando dá as missas, de certeza que já o fez para públicos que vão muito além das paróquias onde está a fazer o seu trabalho…
Sim, mas as pessoas que vêm assistir à eucaristia apenas a pensar que vão ver alguma coisa de diferente saem desiludidas. Nós vamos à missa e à eucaristia não é para ver o padre, nós vamos à eucaristia para nos encontrarmos com Cristo, alimentarmo-nos de Cristo, da mensagem e do pão da vida.
Isto é, não podemos ir à eucaristia à procura disto ou daquilo, vamos porque temos fome deste pão. E sem esta fome, seja qual for o padre, a missa é sempre uma seca. Claro que há sacerdotes mais extrovertidos e há outros menos, mas há toda uma dinâmica, e quem vai pela dinâmica rapidamente se cansa.
Pelo contrário, nós vamos à eucaristia com fome deste pão da vida, deste pão vivo descido do céu. Eu, na eucaristia, procuro ter a música da própria liturgia, com toda a sua sacralidade e todo o respeito que a eucaristia merece, não misturo as coisas.
Uma coisa é a celebração da eucaristia, que não é um espetáculo, é Cristo que se entrega por nós, outra coisa é um espetáculo de música eletrónica. São coisas diferentes com abordagens diferentes, não faz sentido eu levar a dinâmica da eucaristia para um espetáculo de música eletrónica como também não faz sentido trazer a dinâmica de um espetáculo de música eletrónica para a eucaristia.
E os problemas que as paróquias têm por falta de jovens na eucaristia eu também tenho nas minhas. Portanto, a noção da realidade, das dificuldades que a igreja está a passar, eu também as sinto no dia-a-dia.
Lembra-se de quando isto começou, dos primeiros espetáculos que deu, dos primeiros momentos…Como é que tudo isto começa?
Começa de uma forma muito simples. Em 29 de setembro de 2005, tomei posse em Laúndos e a paróquia vinha de grandes obras do restauro da residência paroquial, e ainda faltava pagar uma parte. Não existiam também salas de catequese, por exemplo.
Então foi decidido criar um evento de karaoke com os coros que temos nas paróquias e com os nossos jovens no alto do monte de São Félix. Começamos a fazer estas atividades e tiveram um sucesso tão grande que rapidamente as obras se fizeram. No karaoke, geralmente as pessoas só escolhiam músicas calmas e, ao fim de duas ou três músicas, já estava toda a gente quase a dormir. Então fui para o computador e, entre uma e outra música, comecei eu a passar músicas sem perceber nada de misturar ou algo do género.
Sempre gostei de música então, para mim, era fácil escolher e sabia muito bem como acordar o pessoal, por assim dizer. No ano seguinte comprei uma mesa de mistura, um software e comecei a tentar aprender. Em 2012, tivemos um grande apoio da autarquia da Póvoa de Varzim e aquele espaço ganhou outra dimensão, em São Félix. Comecei a perceber que era preciso algo mais, aquilo já não era brincadeira nenhuma e decidi inscrever-me na Prodj´s do Porto, uma escola para DJ´s e comecei, por 2012, a perceber o que é esta arte de ser DJ, como funciona tudo isso.
Comecei a aprimorar toda a técnica e, desde aí, foram muitos os eventos que se fizeram, seja lá em cima, seja já depois na cidade, na festa de S.Pedro da Póvoa. Foi assim que tudo nasceu, de uma forma muito serena, ano após
ano foi crescendo.
Como foi a aceitação da igreja quando percebe que há um padre que é DJ?
O meu bispo na altura era o D. Jorge Ortiga. Falava com ele muitas vezes sobre isto, conversávamos. E ele percebeu desde logo o que estava aqui a nascer e aquilo que estava a ser feito.
Tudo isto é novo e a igreja não tem de apoiar, mas sempre me permitiu fazer. A igreja são cristãos, são os batizados, entre eles há os padres, os bispos e há o povo de Deus do qual fazemos todos parte. Da estrutura da igreja sempre tive esta liberdade para fazer.
“Tudo isto é novo e a igreja não tem de apoiar, mas sempre me permitiu fazer”
E junto dos seus familiares e amigos, quando se apercebem de que já não há volta a dar e que de facto há um padre, um amigo ou familiar que é padre e também DJ?
Os meus familiares e amigos desde cedo acompanharam este projeto, viram como é que nasceu e cresceu, para eles é normal porque estiveram sempre comigo. Vinham aqui ao espaço Hard Rock Laúndos, à paróquia, muitas vezes à sexta feira à noite e ainda hoje vêm. Outra coisa é a surpresa de ter chegado, por assim dizer, a alguns palcos com uma dimensão que há uns três, quatro, cinco anos não
se estaria à espera.
Agora recuando ainda mais no tempo, e falando um pouco mais da vocação para a igreja, quando e como é que acontece a decisão de se tornar padre?
Eu desde muito novo sempre quis ser padre, desde criança. Eu estava no Monte Largo a brincar com os meus amigos e dizia que queria ser padre, na escola e dizia que queria ser padre. Uns achavam muito bem enquanto que outros não acreditavam, mas eu olhava para o monsenhor José Maria, que era o pároco de São Dâmaso na altura, e dizia que queria ser como ele. Para mim era a minha grande inspiração vê-lo no altar, a forma como ele falava com as pessoas, a forma como ele lidava. Há imagens que eu nunca
mais esqueci.
Por exemplo, chegou a batizar um cigano, chegou a dar catequese também, ajudou muita gente a arranjar casas. Hoje falamos tanto em tolerância, em respeito, e eu cresci nesse ambiente porque o meu pároco já tinha isso tudo.
Era uma pessoa que criava pontes, era normal conviver na igreja com ciganos e falávamos com eles não havia qualquer tipo de discriminação ou receio que fosse. Sempre houve um ambiente de tolerância e integração, e isso tocava-me muito, eu gostava muito dessa imagem.
Depois do monsenhor José Maria veio o padre Domingos que ainda está agora em São Dâmaso. Apesar da minha grande referência, que era o monsenhor, ter saído de São Dâmaso , veio outra grande referência direta do seminário, alguém que sempre me ajudou e apoiou em todos os momentos, o padre Domingos.
O querer ser padre porventura veio do ambiente de fé da minha família. Era normal nós rezarmos à noite o terço no mês de maio. Também rezávamos o terço na escola de Monte Largo, aos domingos na eucaristia com os meus pais ou com a minha avó também rezávamos.
Querer ser padre sempre foi algo natural e bem acolhido na comunidade.
Queria dar esse contributo à sua comunidade, ser de certa forma um exemplo e um líder de uma comunidade…
Eu olhava para a forma como o monsenhor levava a comunidade, depois a forma como o padre Domingos era também acarinhado por todos, e tive essa sorte de ter, no fundo, dois bons exemplos. Gostaria um dia também de ser como eles. Todos nós precisamos de exemplos.
E da sua vida ligada à igreja há alguns momentos importantes que queira destacar também?
Nós no último ano antes de sermos padres temos o chamado ano de estágio. A imagem que eu tinha dos padres era que seriam pessoas muito discretas, mais calmas. Algo que me marcou foi ter estado em estágio em Serzedelo e Gandarela com o padre Antunes, e ver a forma como ele interagia e as suas causas, porque ele já na altura era muito ligado ao Grupo Desportivo de Serzedelo.
A ação dele não ficava só na igreja mas também no futebol. Falava com paixão do que era o Serzedelo quando ele chegou lá, com vários problemas. Restauraram tudo aquilo e limparam toda aquela imagem criando um espaço saudável para o desporto.
Com ele vi que podemos ser padres também fora da igreja e que as nossas causas não tem de ser apenas a celebração da eucaristia ou o trabalho habitual ao nível pastoral. Em Serzedelo, essa postura do padre Antunes tocou-me muito.
Se calhar, aquilo que faço hoje também é fruto dessa outra visão sobre o que é que se pode ser e fazer mesmo representando Deus nas paróquias. E 25 anos depois, o padre Antunes continua a acompanhar-me na música, são muitos os concertos em que ele vai comigo, e são muitos os jogos em que o acompanho a ele para ver o Vitória. Tenho até cadeira no estádio do Vitória mesmo ao lado da do padre Antunes.
Relativamente aos desafios da igreja há alguns que identifica para os próximos tempos?
Nós temos muita gente que passa pela igreja com talentos incríveis e depois não encontra um lugar na igreja para os desenvolver, não
se sentem integrados nem acolhidos. A grande dificuldade para a igreja é isso mesmo, é que todos sintam que têm lugar na igreja e que podem fazer a diferença.
Precisa-se de uma igreja sinodal, uma igreja onde todos também possam dar o seu contributo e ser parte ativa. Portanto o grande desafio da igreja para os próximos tempos é esta, construir uma igreja onde todos possam intervir nas decisões da mesma e dar o seu contributo e desenvolver os seus talentos.
É um desafio muito difícil porque hoje em dia há muitas solicitações, e as crianças têm uma grande quantidade de atividades extracurriculares que tornam mais complicado, por exemplo, a criação de horários para as catequeses.
“Gostava que as famílias colocasse mais a palavra de Deus no centro das suas vidas e como prioridade na educação dos seus filhos”
Hoje em dia as famílias têm muito o hábito de mandar os filhos para a catequese, mas não os acompanham e muitas vezes nem os trazem à igreja. Por isso temos grandes desafios pela frente, nas nossas comunidades e principalmente junto das gerações jovens de pais.
O mundo precisa mais da igreja nos tempos que correm?
O mundo precisa de ter sempre presente quem o criou por amor, e quem nos criou criou-nos com uma missão. Se nós não conhecemos quem nos criou e não formos fiéis à nossa missão, a destruição e a guerra hão-de estar sempre presentes. O mundo não foi criado para isto, o mundo foi criado para a harmonia. As pessoas precisam de voltar para aquele que as criou e de ter tempo para ouvir a voz de quem as criou.
Deus quer continuar a trabalhar no coração de cada um de nós, mas para isso temos de parar de correr de um lado para o outro, fazer
silêncio e meditar para que ele nos possa trabalhar por dentro e nos tornar melhores.
Neste mundo que anda a correr de um lado para o outro, sempre com o telemóvel na mão, como é que entra a voz de Deus? Como é que aqui entra a vocação para que cada um foi chamado? Nós não estamos aqui por acaso, nós fomos escolhidos e destinados a algo. E todos, todos, todos, cabem dentro da igreja.
Qual é a visão que tem para o futuro?
O meu futuro e a minha visão é continuar a ser fiel à igreja. Estarei sempre disponível para a igreja seja como pároco, capelão militar e DJ. Enquanto estiver ligado à música também não vou parar de criar algo novo, diferente, e já estou a trabalhar também há alguns meses para aquilo que irá aparecer no próximo ano mas que ainda é cedo para revelar. Será algo diferente daquilo que estamos a fazer este ano, isso posso garantir.
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