PAIRANDO SOBRE UM NINHO DE CUCOS

Por Carlos Guimarães

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Por Carlos GuimarãesHá palavras e conversas que caminham connosco, que nos assaltam a memória a cada momento e ficamos sequestrados no seu impacto e conteúdo. O seu significado é tão intenso que o sono foge na hora de chegar e se perde na hora de ficar. Naquele dia o velho senhor estava agastado e triste com vida que carregava nos ossos deformados pelos seus 85 anos de idade. Mantinha uma vida lúcida, ativa e plena, mas cada vez mais triste e contaminada. Próximo de celebrar os 86 anos, este velhinho ainda trabalha com gosto e diz-me com amargura que o trabalho lhe oferece a melhor parte do dia. A sua vida mudou radicalmente quando a mulher começou a ficar vazia das ideias. As artroses já lhe consumiam a alma há algum tempo, mas quando aos 84 anos foi atacada pela demência e ficou fechada no seu mundo em que tudo passa ao lado e nada lhe pertence tornou-se dependente, aquele fardo cujo peso e medida conhece quem o carrega. Durante o dia, enquanto o marido trabalha, alguém a cuida e lhe faz companhia, mas a partir do fim da tarde tudo fica sob a tutela do velho senhor. Ele cozinha, arruma e cuida. Vive as noites mais duras e mais longas da sua longa vida, são noites de sono vadio e atropelado pela angústia tão grande que parece infinita. Uma injustiça, uma crueldade, uma realidade. Uma cerca cada vez mais apertada e sem buracos por onde escapar.

O nosso mundo cada vez mais fascinante, plastificado e cibernético vai-se construindo sobre uma galopante legião de dependentes e outros tantos que sofrem com eles. Aponta-se um número: cento e oitenta e cinco mil portugueses sofrem de demência. Somam-se a estes muitas mais pessoas anuladas por outras doenças mentais e neurológicas e outras perdidas nas terapêuticas que lhes são impostas. É gente que se farta, uma multidão colada a um número que provavelmente peca por largo defeito.

Ainda tenho bem presente aquelas imagens de Jack Nicholson com as duas cicatrizes frontais após ter sido submetido à leucotomia pré-frontal. Um homem morto em vida, vazio, anulado e esventrado de todas as emoções. Randall fingiu-se de louco para escapar à prisão e ser internado num hospital psiquiátrico. A sua esperteza e loucura acabou na mais severa das prisões perpétuas.

É um facto que vejo à minha frente uma crescente sociedade que voa sobre um ninho de cucos. Todos os dias se senta à minha frente gente perdida e amparada em caixas e caixas de psicofármacos. Mentes estagnadas como água choca com insectos à tona afogando-se lentamente. Se dantes eram alguns, agora são muitos e custa ver estas vidas perdidas na depressão e nas drogas que as anulam. Num mundo cada vez mais tecnológico, robótico e voando sobre a inteligência artificial, custa a entender (ou talvez não) como cresce a degradação da mente. De que vale uma vida biológica colada a uma mente morta? De que vale a preservação das funções vitais coladas a um corpo inanimado? Há muitas perguntas que faço e respostas que não encontro neste voo rasante sobre o ninho de cucos. Talvez o amor seja a resposta a isto tudo, ou talvez não. Entretanto o ninho cresce e os cucos não conseguem bater as asas.

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