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Café Oriental: PROMESSAS

Por Francisco Teixeira.

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Por Francisco TeixeiraAinda hoje, a promessa é a de uma utopia de igualdade e liberdade. A igualdade liga-nos a um mundo de distribuição justa dos bens, de harmonia social, já que não há salvação individual, como qualquer cristão há de saber; a liberdade descreve aquela híbris de autorrealização e autenticidade, de autoedificação, de pulsão prazerosa de si mesmo, que se espera possa contaminar de alegria a mãe, a amante, a filha, que no limite possa contaminar de alegria o mundo que há de vir. A promessa tinha um instrumento/arma essencial: o livro. O livro proveria o mundo de razão, primeiro, sentido, depois, beleza, depois ainda, de uma sucessão de camadas de organização, envolvimentos e insights cognitivos, cuja máxima sofisticação se condensaria no Romance, essa forma estilística cheia de ideias, palavras, páginas e subtilezas gráficas que só o tempo seria capaz de descodificar e condensar em novas ideias, palavras e, sem dúvida, ações, de grande alcance, em loucas engenharias sociais, ou apenas ações de um flâneur, cheio de afetação a não fazer nada.

O livro/romance podia salvar-nos. O livro sempre foi o Tal. Uns quantos acham o seu livro o livro especial. Mas passam singelamente por cima do facto de que antes d’o livro, existe o livro, uma categoria que os subsome a todos, pelo qual todos os outros são qualquer coisa que se veja. Ter um livro mental, suspeitar que há ali um livro, entre as capas, naquele sítio discreto, concreto, analógico, é anterior a todos os livros particulares, especiais, sagrados ou profanos.

O livro era a forma e o instrumento da promessa. O livro tem peso, leva tempo, precisa do tempo e ocorre no tempo, tem uma estrutura, exige recolhimento, concentração e obriga-nos a pesar a necessidade de uma comunidade com quem possamos partilhar a conversa, o silêncio, a razão, o argumento, o lance retórico, o riso, a suspeita e a insinuação. Nessa comunidade de iguais, igualmente leitores/ouvintes (auto-ouvintes), podemos insistir na autoedificação, partilhar possibilidades, continuar a construir comunidades de iguais.

Esse universo da promessa livresca é uma ética ab initio. Para rir e imaginar com os outros temos, ambos, de jurar a mesma razão, as mesmas possibilidades lógicas, a mesma honestidade intelectual, um chão que, ainda que não integralmente comum, sempre há de unir-nos na garantia de que, se quero ler e ser lido, tenho que deixar que o outro aceda à razoabilidade das minhas razões, à maleabilidade das minhas metáforas, a um mínimo de transparência das minhas antinomias, à sombra das minha efabulações.

Aquela ética livresca funda, ou fundava, ou fundou, a nossa cultura. Sem ela passamos rapidamente da conversa para a desconversa, para o desfazer da conversa, da troca para a justaposição de razões, da mútua perturbação para a mútua exclusão. Uma ética da conversação, ou uma ética da razão pública, é uma ética livresca, uma ética do romance (não uma ética da comunicação formalmente estabelecida, à Habermas), uma sabedoria do romance, à Kundera, onde a complexidade se assume como conatural ao pensar, ao discorrer, onde nem Anne nem Karenine têm a razão toda, onde nem Dom Quixote nem Sancho Pança são os arquétipos de coragem e heroísmo, mas unindo-os uma igual angústia de dar sentido, de procurar, de escavar sem fim.

Esse desejo de sentido, de complexidade, não de Verdade!, traz consigo uma exigência social indeclinável: a de dar espaço à palavra, ao debate, à frase, ao livro, à biblioteca, mesmo sob risco do kitsch e do palavreado sentimentalis. Sem eles, não há promessa para cumprir, sequer promessa por vir, e tudo se torna violência, mentira, manipulação, egomania, até à queda e dissolução final pelo sms…

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