“Sagas de Claire”: Um jogo de combate à dislexia nas crianças

“Sagas de Claire” é um jogo direcionado para as crianças a partir dos quatro anos de idade e tem como objetivo combater a dislexia de forma precoce, mas também de promover a aprendizagem da leitura e escrita.

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Criado pelo vimaranense João Borges, professor do Instituto Politécnico do Cávado e do Ave (IPCA), e por Clara Gomes, natural de Barcelos e especialista na área de perturbações na leitura e escrita, o jogo desenrola-se dentro de um mundo de piratas, em que a criança tem de passar todos os níveis, melhorando a sua “consciência fonológica”, como explica a investigadora.

O jogo inclui mais de três mil exercícios de língua portuguesa e João Borges considera-o “um novo paradigma” no mercado nacional, mas também brasileiro e PALOP. Clara Gomes realça que é essencial diagnosticar e fazer intervenção nessa perturbação de forma precoce nas crianças e alerta para várias consequências a curto e a médio prazo, como o abandono escolar.

Como surgiu a ideia do “Sagas de Claire”?

Clara Gomes: Este jogo já é algo que está muito consolidado, porque a ideia vem de há muito tempo. Nasceu num programa de doutoramento que criei como investigadora para tentar ajudar as crianças a trabalhar questões de perturbações de leitura e escrita. Nessa altura, já há quase uma década, tentei validar um programa de intervenção muito precoce, porque devemos atuar da forma mais precoce possível. E foi assim que começou tudo, o início das “Sagas de Claire” foi nessa altura.

Porque sentiram a necessidade da criação do jogo? O “Sagas de Claire” é uma forma de ajudar a combater a dislexia nas crianças?

Clara Gomes: Eu acompanho crianças diariamente e faço intervenção em perturbações na leitura e escrita. O que é um facto é que percebemos, através dos estudos nacionais e internacionais e da literatura, que estas questões devem ser trabalhadas o mais precoce possível, apesar de termos a possibilidade de apenas fechar um diagnóstico no fim do segundo ano. A partir dos 4/ 5 anos conseguimos detetar alguns sinais que nos permitem prever algum problema quando a criança começar a aprender a ler.

Por essa razão, há investimento e esta investigação para testar este programa de intervenção nestas idades, para depois as crianças que possam vir a ter um diagnóstico, esse diagnóstico não seja elevado. Temos vários graus quando falamos de uma perturbação de leitura escrita para a grande maioria das pessoas. E a verdade é que podemos atenuar pelo menos um pouco essa dificuldade que a criança terá quando entrar no primeiro ano.

“A dislexia ou as perturbações de leitura têm impactos muito significativos na vida da criança e da própria família.”

Qual é a importância de detetar a dislexia nas crianças de forma precoce?

Clara Gomes: A dislexia ou as perturbações de leitura têm impactos muito significativos na vida da criança e da própria família. Estamos a falar de uma criança que tem um potencial cognitivo normal ou acima da média, portanto nada as impede de aprender de forma normal, mas precisam de uma metodologia diferenciada e é isto que o programa pode vir a acrescentar.

Uma criança que entra no primeiro ano e que não suspeita, nem a família, que possa vir a ter um problema de leitura, muito rapidamente percebe que a turma está a aprender a ler e a escrever de uma forma muito mais rápida. A primeira consequência é a criança perceber que não é capaz e a autoestima dela começar a ficar muito beliscada, começando a sentir-se diferente do outro. Essa é a primeira consequência, tudo o resto são dificuldades que crescem a aprender qualquer área disciplinar, não é só português. Estamos a falar de estudo do meio e matemática que é influenciado por esta falta de capacidade rápida de ler, escrever e compreender.

Portanto tem consequências iniciais, mas a longo prazo podemos identificar outras e muito graves que fazem com que uma criança que tenha uma perturbação, que não seja diagnosticada, possa ter muitas dificuldades ao longo do seu percurso escolar, podendo fazer com que abandone a escola de forma mais precoce, impedindo que concorra a um curso superior, por exemplo.

Temos dados intervencionais que mostram cada vez mais que há consequências graves. Por exemplo, na adolescência são crianças que têm mais propensão para terem uma gravidez precoce, para entrarem mais facilmente no mundo das drogas.

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A longo prazo, há um estudo mais recente que nos mostra que nos Estados Unidos 48% dos presos têm uma perturbação de leitura e escrita. Se pensarmos: Essas pessoas chegaram àquele ponto porquê? Porque não tiveram oportunidade de ter uma intervenção no ensino pré-escolar que é isso que o “Sagas de Claire” oferece, uma hipótese de intervenção gratuita e consolidada para os educadores de infância poderem apostar nesta área que se chama consciência fonológica para prevenirem estas dificuldades, estas consequências a curto prazo e as consequências a longo prazo.

João Borges: De salientar que o diagnóstico precoce é extremamente essencial, porque um diagnóstico e uma intervenção feita no primeiro ano do primeiro ciclo tem um resultado mais impactante comparativamente com um diagnóstico a partir do terceiro ano. Estamos a falar de uma comparação de 90 a 10% de recuperação. O diagnóstico traz outras questões associadas à possibilidade de fazer o acompanhamento. Existe o diagnóstico e depois a intervenção é feita com custos associados. A questão do jogo tenta colmatar essas necessidades, uma intervenção precoce e torná-la acessível, porque os jogos hoje em dia têm custos extremamente acessíveis comparativamente com uma abordagem mais clínica.

“Acreditamos que é um novo paradigma, não só no mercado nacional, mas também brasileiro e PALOP.”

O jogo é gratuito e muitas das ajudas clínicas são pagas. O jogo é uma revolução para ajudar a combater esta perturbação?

João Borges: Eu diria que pode ser chamado um novo paradigma, contudo, o contexto tecnológico já existe. Os jogos já existem em diferentes necessidades. O foco é a língua portuguesa, por isso, nesse mercado acreditamos que é um paradigma novo. Existe um produto concorrente, mas que não tem a mesma dimensão científica e do ponto de vista de abordagem que nós temos. A extensão que temos de exercícios excede os três mil de língua portuguesa, por isso acreditamos que é um novo paradigma, não só no mercado nacional, mas também brasileiro e PALOP.

Clara Gomes: Posso dizer que é inovador por várias razões: primeiro, estamos a falar de uma dimensão que se chama consciência fonológica, que é aí onde o jogo acaba por estar em torno desse conceito ou dessa competência fundamental para a aprendizagem da leitura. Portanto estamos a falar de um sinal de alerta que a criança começa a revelar aos três/quatro anos e percebe-se que por ter essa dificuldade, pode não vir a aprender a ler e a escrever como é suposto.

Quando estamos a falar de uma perturbação de leitura e escrita, estamos a falar de um diagnóstico que é feito de uma prevalência a nível mundial que está entre os 5 e os 15% da população. Em cada sala de aula, temos um a três alunos com esta problemática e nós podemos atuar de forma preventiva. Reconhecendo que há esta prevalência, todas as salas de aula no nosso país e no mundo inteiro têm estas crianças com estas perturbações, sabendo das consequências que esta perturbação pode ter na vida da criança, na vida das famílias e no futur depois deste jovem adulto.

No nosso país temos um ou outro programa que faz este género de intervenção, mas é através de jogos de tabuleiro. Não estamos a falar deste nível digital. Temos sim um produto que pode ser chamado concorrente, mas não está validado num estudo de doutoramento como aconteceu, e além de o jogo estar validado, esta gamificação que foi feita, está a ser novamente validada para termos dados científicos e percebermos que ganhos a criança tem ao jogar com este programa. Num pós- doutoramento, estamos a falar de um programa que tem um
investimento e esta maturidade de desenvolvimento que não há mais nenhum no nosso país.

João Borges: Estamos a falar de 200 crianças no norte do país que foram incluídas neste estudo, o que nos garante que este programa traz resultados benéficos para crianças do ensino pré-escolar e do primeiro ciclo.

“No nosso país, o único estudo que foi feito já tem cerca de uma década e provou que 5,4% da população tinha esta perturbação.”

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A nível nacional, há alguma estimativa de quantas crianças possam ter dislexia?

Clara Gomes: Temos de perceber que, para termos uma prevalência de dificuldade na aprendizagem, são muitas variáveis que estão relacionadas com isso. A mais direta é se a língua é transparente. Estamos num misto, temos uma língua que é semi-transparente. Isto quer dizer que nem todos os nossos sons correspondem a uma letra. O que acontece é que nessas línguas mais transparentes, 5% da população garantidamente tem essa perturbação. No nosso país, até ao momento, o único estudo que foi feito já tem cerca de uma década, e provou que 5,4% da população tinha esta perturbação.

Ter uma perturbação de leitura é ter uma perturbação de origem neurobiológica, é ter um potencial cognitivo dentro dos padrões normais ou acima da média, portanto é uma dificuldade que surge de forma inesperada. A família e a escola não conseguem compreender como é que uma criança na oralidade é muito perspicaz, mas na realização não consegue concretizar aquele exercício ou é lento na descodificação da letra som. Esse sinal de alerta deve-nos colocar a pensar, mas devemos atuar.

Não percamos tempo. Quando a criança entra para o primeiro ano e tem uma capacidade normal de oralidade e revela problemas na leitura e escrita, devemos procurar especialistas, equipas, psicólogos, terapeutas da fala, professores de educação especial, alguém que nos possa ajudar a encaminhar este aluno para ter uma intervenção o mais rapidamente possível.

João Borges: O foco aqui não é a dislexia. As crianças com dislexia vão beneficiar mais, mas a consciência fonológica é transversal. Se tivermos uma criança com ou sem perturbações que possa trabalhar a consciência fonológica previamente, vai beneficiar. Por isso o jogo deve ser visto desta forma, pode ser utilizado por qualquer criança antes e durante os estudos do primeiro ciclo.

Clara Gomes: Há aqui um efeito de causalidade. O jogo é para as crianças do pré-escolar a partir dos quatro anos, para desenvolverem esta dimensão da consciência fonológica de forma lúdica e estarem a trabalhar de forma divertida. Todas as crianças que desenvolvem esta competência, melhoram os seus níveis de leitura aos seis anos. O método de ensino normal faz com que a criança tenha de associar a letra ao som, a descodificação. E este jogo trabalha essa questão.

Qual a razão de não ser um jogo de tabuleiro, mas sim digital?

Clara Gomes: Nós temos os dois produtos criados. O jogo de tabuleiro começou por ser o produto inicial. Estamos a partir de um programa validado, que foi colocado em jogo de tabuleiro. Nesse processo, surgiu uma oportunidade de um patrocinador para gamificar esse jogo de tabuleiro. Portanto o jogo de tabuleiro ainda não está disponível no mercado e avançamos com essa oportunidade que surgiu com uma parceria com a Descolar, uma associação para crianças desfavorecidas que dirijo no Porto.

Então lançamos recentemente este jogo das três ilhas gratuitas para todas as crianças do nosso país e não só, está disponível para o mundo todo. O jogo de tabuleiro será lançado este ano.

“Hoje em dia, os dispositivos móveis são muito acessíveis, as crianças têm uma interação facilitada com eles.”

João Borges: Aqui temos de olhar para os eixos que consideramos serem lacunas para trabalhar em crianças com dislexia. Estamos a falar do diagnóstico precoce e uma intervenção no acompanhamento que é dispendioso e muitas vezes inacessível geograficamente. E o jogo traz-nos soluções para estes problemas. Podemos também dar uma acessibilidade maior à intervenção. Hoje em dia, os dispositivos móveis são muito acessíveis, as crianças têm uma interação facilitada com eles.

Trazemos para esta realidade um benefício. Trazemos um jogo para fazer intervenção onde nem eles acabavam por sentir que a estão a fazer. As crianças estão imersas num jogo e numa história e estão na realidade a fazer uma investigação especializada.

Como é a história do “Sagas de Claire”?

Clara Gomes: O jogo acontece num mundo de piratas. A criança depara-se com desafios colocados pela pirata Claire à qual eu dou voz. As questões são de consciência fonológica nas quatro dimensões que existem: da palavra, silábica e intrassilábica e fonética. A criança não se apercebe que está a ser alvo de uma intervenção especializada e acaba por estar num mundo de piratas a percorrer uma aventura de ilha em ilha onde surgem casas que facilitam o avanço no jogo.

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O personagem mais simpático é o papagaio Dru na voz do João Borges e surge a competição criada por uma personagem temida pelas crianças, que é o pirata Barba Negra também na voz do João, que faz com que encontrem estas casas de obstáculos que podem recuar uma casa ou iniciar tudo. A criança tem de percorrer uma ilha e responder a um determinado número de perguntas para conquistar o objeto mágico.

Mas o que queremos garantir aos pais, professores e terapeutas é que além da criança estar a responder a perguntas que vão ajudar neste processo, ela não consegue avançar para a ilha seguinte sem obter um mínimo de questões que é suposto responder acertadamente. Se não atingir o número mínimo, a pirata Claire volta a lançar desafios para testar a criança para que consiga consolidar estes conhecimentos que possam não ter sido adquiridos no primeiro percurso.

No jogo que é gratuito há três ilhas. No jogo que será lançado e será uma versão paga, mas acessível, são oito e no final a criança concluiu o programa de intervenção e está relativamente bem preparada para o processo de leitura e escrita, alcançando o baú do tesouro.

João Borges: Contudo, existe aqui uma repetibilidade. Há mais de três mil exercícios que não são concluídos com uma única passagem pelo jogo completo, com a questão da ludicidade sempre presente, para a criança se manter interessada na jogabilidade. Mas a repetibilidade é possível de várias formas. Um dos objetos dá à criança a possibilidade de poder escolher as ilhas onde pretende voltar a jogar, por isso há aqui uma tentativa de manter a motivação.

De onde surgiu a ideia da história deste jogo?

Clara Gomes: Sendo especialista em perturbações de leitura e escrita, percebo que quando uma criança tem dificuldade em ler, a primeira situação que acontece é a rejeição em relação à leitura. Para a criança, é penoso ter de ler e escrever, é algo que podemos dizer sofrido. E nós terapeutas estamos em contexto de intervenção individualizada, temos que ter metodologias diferenciadas daquilo que acontece em contexto sala da dela, porque temos de ensinar de forma diferente para que a criança consiga aprender. Temos de ter este fator de ludicidade para que
a criança tenha gosto de estar na sessão e dê continuidade em casa a estes exercícios.

Ter uma perturbação implica ter um trabalho muito acrescido para a criança e para a família. A criança deve ter um treino diário, se possível de três a cinco vezes por semana acrescido a tudo o que as crianças fazem no seu dia a dia. A ideia surgiu de querer criar algo que ajude estas crianças a trabalharem de forma divertida e que consigam em casa fazê-lo sem que os pais tenham de criar algo diferente, porque é um prolongamento da terapia.

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“Esta metodologia teve ganhos significativos em todas as crianças que beneficiaram deste programa.”

O mundo dos piratas surge por ser algo que eu penso que agrada ao universo infantil e agrada tanto aos rapazes como às raparigas. Foi testado durante três anos desde os cinco aos sete anos, e percebemos que além de ser apelativo, esta metodologia teve ganhos significativos em todas as crianças que beneficiaram do programa. Tivemos um grupo de controlo que não beneficiou e que teve a mesma base das crianças que beneficiaram. Três anos depois, as crianças que jogaram o jogo de tabuleiro tiveram ganhos significativos ao nível da compreensão da leitura. Esse grupo lia 33% melhor que o outro e, em termos de velocidade, estavam com níveis de 25% superiores aos que não tinham beneficiado.

João Borges: O jogo chama-se “Sagas de Claire” por isso é fácil perceber a expansibilidade deste universo. Sempre mantendo a ótica da intervenção, podemos adicionar intervenções no futuro neste contexto de a criança se manter com a Claire noutras aventuras.

O professor João é docente no Instituto Politécnico do Cávado e do Ave e a Dr. Clara é especialista nesta área. Como é que foi esta junção para criarem o jogo?

João Borges: A confiança é sempre importante e foi assim que surgiu a parceria. O IPCA tem como um dos seus eixos estratégicos a ligação com a sociedade com empreendorismo social e com a necessidade do tecido empresarial. Num dos seus programas, onde junta equipas multidisciplinares de estudantes com empresas, surgiu esta primeira parceria numa temática similar de criar soluções e ferramentas para  crianças com perturbações de aprendizagem específicas. A Descolar fez a primeira parceria connosco e criou-se a confiança. Daí surge uma nova iniciativa, através da Dr. Clara, a oportunidade de criar o “Sagas de Claire” e como já havia esta confiança, ingressamos novamente num projeto.

Obviamente que há aqui um grande benefício da questão multidisciplinar. Eu sou de uma área tecnológica e de gestão de projeto, obviamente tenho todo o conhecimento especializado que é diferenciador.

O “Sagas de Claire” apenas poderá ser jogado em casa, ou haverá parcerias com escolas ou outros estabelecimentos para que possa servir de apoio para as crianças?

Clara Gomes: O jogo está, neste momento, disponível para todas as pessoas, escolas, famílias, terapeutas e clínicas de intervenção. É gratuito, podem descarregar no site do jogo e o feedback que temos recebido é muito positivo. Está há cerca de dois meses disponível e têm sido muitas as famílias que estão a experimentar o jogo mas também tem sido muitas as escolas e gabinetes de intervenção especializado que nos contactam. Temos uma rede de contactos que tentamos divulgar ao máximo que as crianças do país, principalmente. Porque o jogo
está validado em português, mas será possivelmente validado noutras línguas.

João Borges: Contudo, não dizemos que não a uma futura estratégia através dos municípios ou diretamente com as escolas, onde poderíamos considerar um programa de intervenção mais especializado, garantindo estas métricas nos estudantes que aderissem ao programa onde fizéssemos a intervenção.

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