Carlos Guimarães: “É gratificante saber que as pessoas ficaram presas à história de início a fim”

Com uma longa carreira como médico urologista, o vimaranense acaba de lançar o seu oitavo livro, “O Bastardo”.

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Carlos Guimarães partilha duas paixões: a medicina e a escrita. Com uma longa carreira como médico urologista, o vimaranense acaba de lançar o seu oitavo livro, “O Bastardo”, que apresentou na Biblioteca Raul Brandão, no passado dia 30 de junho. Em entrevista à Mais Guimarães, conta-nos como nasceu o gosto pela escrita na sua vida e o que podem os leitores esperar desta nova obra.

© Ricardo Carvalho / Mais Guimarães

Acaba de lançar o seu oitavo livro, “O Bastardo”. Esta é uma obra que “desafia o processo recriador, num tempo misto de surpresa e admiração”?

Foram essas as palavras do leitor. No fundo, o livro foi apresentado a algumas pessoas que gostam de literatura e dissecaram a obra com essas palavras. Efetivamente, todos os livros são criações. E isto foi uma forma de eu ter olhado para a história do século XIX, ter ido beber dela para o meu processo criativo. Fiz toda essa recria- ção que deu origem a “O Bastardo” e que tem várias interpretações. Como eu sempre digo, os livros não são de quem os escreve, mas sim de quem os lê.

Para quem ainda não ouviu nada sobre a obra, o que vão poder encontrar?

Vão poder encontrar um livro extremamente escuro. Este não é um livro sorridente, embora tenha várias partes que fazem sorrir. Na verdade, é um livro que anda à volta de um drama: o abandono infantil no século XIX. Foi criada uma instituição – a Casa da Roda – onde as crianças eram depositadas, que era a “roda dos enjeitados”ou a “roda dos expostos”. À volta da criação da “roda dos expostos”, dos procedimentos, de como funcionava, fiz toda uma história queme levou a fazer muita investigação do ponto de vista histórico. Trata-se de uma obra ficcionada, baseada em muitos factos reais, com a criação de personagens, nomeadamente a personagem principal, o Martinho de Oliveira. Ele foi colocado na “roda” em dia de São Martinho, com um ramo de uma oliveira ao peito, mas isso são pormenores que quem ler o livro vai entender melhor.À volta disso, procurei explorar dois sentidos: o olhar e o olfato. São os sentidos que melhor conseguimos traduzir, em termos descritivos, e que fazem transportar as pessoas para a nossa história.

© Eliseu Sampaio / Mais Guimarães

Como é que o tema surgiu para este livro? Era um tema que já pairava há algum tempo ou foi algo repentino?

Foi através de uma pequena notícia que li no jornal sobre a roda dos expostos. Quando a li pensei que era um excelente tema para escrever um livro. A partir daí, comecei a construir mentalmente aquilo que eu queria meter na história. Apesar de não ser um romance histórico, e para não atropelar muito a história, tive que ler uma sé- rie de artigos, teses sobre a “roda dos expostos”. Estes acabaram por me instruir em muitas das descrições que estão no livro, que são descrições reais. Alguns dos factos são de tal forma reais que podem até ser traumatizantes para quem nunca ouviu falar desta realidade, o que se passava dentro destas casas, a altíssima taxa de mortalidade que existia, os maus tratos sofridos e os otivos que levavam as pessoas a lá colocarem as crianças. À volta disto é construída uma história cativante e extremamente escura, tal como eram escuros os tempos do século XIX.

No decorrer dessa investigação, ficou surpreendido com aquilo que foi encontrando ou já tinha a consciência que essa era, de facto, uma realidade muito escura?

Já sabia que a realidade era escura. Aliás, quando lemos livros da idade média, do século XIX, literatura francesa ou mesmo a nossa literatura, percebemos que eram tempos muito escuros, muito sombrios, árduos. Na minha mente já estava construído que eram tempos maus. Por exemplo, dois terços das crianças que entravam na “roda dos enjeitados” morriam, além dos maus tratos que sofriam e as mortes que eram provocadas pelas próprias cuidadoras. Aliás, a última mulher a ser executada em Portugal foi precisamente uma ama de leite de uma casa da roda, que estrangulou um enjeitado.

Quanto tempo passou desde que teve a ideia, realizou a investigação e concluiu a obra?

Pouco. Sou daquelas pessoas que entre a ideia e a concretização não tem muita paciência. A única coisa que se meteu pelo meio foi a pandemia. A ideia aconteceu no final de 2019, altura em que iniciei as leituras à volta do tema. Como médico, a pandemia focou-me muito na minha atividade profissional, o que me fez encostar “O Bastardo”. Não peguei nele até ao final do ano passado. Entretanto, ainda editei dois livros pelo meio, um deles sobre crónicas da pandemia e um outro sobre prosa poética. Aí, decidi avançar com “O Bastardo”, que até então não o era, uma vez que a última coisa que faço é escolher o título. Tratou-se de um livro concretizado nos primeiros meses deste ano.

© Ricardo Carvalho / Mais Guimarães

Que sentimento fica agora que já o entregou aos leitores?

Os livros não servem para nada se não forem lidos. E aqueles que são lidos, não servem para nada se não despertarem pelo menos uma de duas coisas: o prazer da leitura e o envolvimento das pessoas com a história, ou o conhecimento.Creio que este livro, apesar de ser uma história pesada e densa,tem proporcionado boas leituras pelo feedback que tenho recebido. Houve, inclusivamente, uma pessoa que me mandou uma mensagem a dizer que tinha demorado um mês a ler o seu último livro e que tinha lido “O Bastardo” em apenas dois dias. É gratificante saber que pelo menos as pessoas gostaram e ficaram presas à história de início a fim.

Escolheu a Biblioteca Municipal Raul Brandão para a apresentação desta obra. Foi uma escolha ocasional ou este lugar tem um significado especial para si?

As bibliotecas são sempre especiais porque têm livros. Se repararmos, apesar do estrondo tecnológico que vivemos, o livro sobreviveu. As cassetes de vídeo morreram, o DVD morreu, assim como as câmaras de filmar. O e-book não vingou. Não sei ao certo qual a estatística, mas penso que por cada mil livros vendidos se vendem apenas cerca de dez em formato digital. O livro é um resistente.A Biblioteca tem um excelente espaço, o seu jardim, que muita gente desconhece e que é extremamente agradável. Eu pretendia fazer um lançamento onde as pessoas se reunissem e se sentissem bem, num entardecer que por acaso foi ótimo, com uma boa temperatura e com um vento que nos acalmava a transpiração.O seu primeiro livro foi lançado em 2015 e desde então que não parou de escrever.

© Ricardo Carvalho / Mais Guimarães

Sendo médico urologista, como é que surgiu a escrita na sua vida?

A escrita surgiu na minha pela pelos 10 ou 12 anos. Aliás, no meu primeiro livro falo num concurso literário ao qual eu concorri, promovido pelo Comércio do Porto, quando na minha terra nem sequer jornais havia. Na altura, foi um primo que me falou do concurso e acabei por ganhar. Sempre gostei de escrever, mas quando entramos nas teias da medicina ficamos absorvidos pelas leituras técnicas, nos estudos, na entrega ao trabalho, e isso vai-nos estupidificando. Já dizia quando estudava que há tempo para tudo. O clique deu-se em 2014 ou 2015 quando li o “Galveias”, de José Luís Peixoto. A obra é uma viagem a Galveias e eu pensei em fazer uma viagem à minha terra, a Candoso, com a minha escrita.

O Carlos é uma personalidade bastante acarinhada entre a comunidade vimaranense. Sente que as pessoas o incentivam a continuar com a escrita?

Mais do que incentivar, as pessoas quase que me obrigam. Por vezes quero pausar e ser só leitor, mas volta e meia tenho as pessoas a questionar-me sobre quando sai o próximo. Apesar de responder sempre que não sei, a verdade é que o próximo já está a ser escrito. Manuscrevo sempre porque consigo transmitir melhor as coisas para o papel. Depois começo a passar o texto e aí tenho mais cuidado em formatar tudo.De momento tenho ideias para dois livros. Habitualmente trabalho sempre com duas ideias, exatamente como quando leio. Nunca leio um livro só, mas sim dois ou três ao mesmo tempo. Para mim, escrever funciona como uma espécie de ansiolítico, como um relaxante. Nunca escrevo sob pressão. Seja uma frase, um parágrafo ou capítulo, é feito num momento de relaxamento, de escape à pressão do dia a dia.

© Eliseu Sampaio / Mais Guimarães

Que mensagem deixa às pessoas que ainda não despertaram para a literatura?

A primeira coisa que devem fazer é ignorar algo que todos temos dentro do nosso bolso: o smartphone ao qual estamos sistematicamente presos. Estamos tão presos que nos esquecemos que temos outras leituras para fazer. O nosso telemóvel, o nosso tablet e o nosso computador absorvem-nos demasiado tempo que podíamos dedicar a uma leitura mais relaxante e que nos iria permitir diminuir a nossa pressão arterial, a nossa frequência cardíaca.Ler é sempre um bom remédio, sobretudo aquilo que nos dá prazer e não aquilo que nos tentam impor, mesmo que no bom sentido da palavra. Às vezes as recomendações que nos chegam simplesmente não vão de encontro ao nosso tipo de escrita ou de conteúdo que mais me faz feliz e dá bem estar. Costumo dizer a todos aqueles que não gostam para lerem o meu primeiro livro, “O Trémulo da Carriça”, que vão passar a gostar [risos].

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