“Conheçam e aceitem o lúpus, aprendam a viver com ele e a controlá-lo”

Entrevista publicada na edição de maio da revista Mais Guimarães.

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Sofia Silva Ribeiro vive com lúpus há mais de 12 anos. Psicóloga de profissão, usa os seus conhecimentos para ajudar aqueles que também convivem com a doença e acredita que “é possível viver com qualidade a partir do conhecimento, aceitação e responsabilização pela nossa doença”. A vimaranense é ainda investigadora no Doutoramento em Psicologia da Saúde no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, com um projeto que pretende desenvolver uma intervenção digital para promover a qualidade de vida de mulheres com lúpus.

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Enquanto psicóloga, ajudas pessoas que partilham da mesma doença que tu. No teu caso, como é que descobriste o lúpus e de que forma é que a psicologia entrou na tua vida?

Eu descobri o lúpus em 2010, no meu primeiro ano da universidade, tinha 18 anos. Inicialmente os meus sintomas eram dor articular e fadiga, principalmente de manhã, e febre. Acordava de manhã com dores articulares e rigidez que não me permitiam, por exemplo, atar os atacadores das sapatilhas ou apertar o botão das calças, preci- sava de ajuda para algo que parece tão básico como me vestir. Na primeira aula da manhã não conseguia tirar apontamentos, porque não conseguia pegar na caneta por causa das dores, além de me sentir bastante cansada e muitas vezes ter febre ao início da manhã. Apareceram-me também algumas manchas na pele típicas do lúpus. Passei por diferentes médicos de diferentes especialidades e passados alguns meses, depois de bastantes análises, descobriu-se que era lúpus, mas, nessa altura, já estava medicada e, por isso, já sentia algumas melhoras dos sintomas. Inicialmente o meu lúpus apenas afetava a pele e as articulações. Mais tarde chegou a ter impacto também em outros órgãos, como os rins e o fígado, e por isso tenho lúpus eritematoso sistémico. A psicologia entrou na minha vida antes do lúpus entrar quando, a partir da disciplina de psicologia do ensino secundário, decidi escolher psicologia para seguir na minha formação no ensino superior. Sinceramente nunca pensei hoje usar a minha área profissional para ajudar outras pes- soas que partilham a mesma doença que eu, não era esta área que eu imaginava trabalhar.

Nessa altura, foi difícil aceitar a doença? Consideras que tinhas informação suficiente à tua volta?

Sim, inicialmente foi muito difícil aceitar a doença, ainda demorei uns anos para o conseguir fazer. Eu escondia o lúpus, não falava com ninguém, não pedia ajuda mesmo que precisasse dela. Poucas pessoas, só mesmo as mais próximas de mim, é que sabiam que eu tinha lúpus. Porque, com 18 anos, deixar de fazer coisas que nos parecem sempre tão básicas e tão banais é muito difícil de assimilar. Nunca me foi indicado, por exemplo, a procura de um profissional de psicologia para conversar sobre o assunto e mesmo estando já na área da psicologia não percebi o quanto me poderia ter ajudado. Isso fez com que, por fazer esse processo sozinha, demorasse demasiado tempo. Mas sei que o facto de ter aceitado o lúpus mudou completamente a minha vida, foi um separar de águas em termos de qualidade de vida, pois foi quando eu o aceitei que me permiti a aprender a viver com ele e procurar um estilo de vida que me permite viver com qualidade.

Quando recebi o diagnóstico, apesar de me terem dito para não fazer pesquisas na internet sobre lúpus, eu fi-lo e acredito que a maior parte das pessoas faz e considero que muita da informação que existia na altura era bastante pessimista. Lembro-me de ver artigos sobre como a esperança média de vida de uma pessoa com lúpus era inferior a uma pessoa sem doença crónica, o que sabemos hoje que não é verdade. Lembro-me de ver até adaptações que eu teria de fazer numa futura casa por causa das limitações que o lúpus pode trazer. Isto, para uma miúda de 18 anos, tem um impacto também bastante grande.

A tua página de Instagram surge precisamente para isso?

Sim, também por isso surge a minha página do Instagram, Facebook e o meu site. Posso dizer que surge por três razões principais. Em primeiro lugar para tentar passar uma visão mais positiva sobre o lúpus, e sobretudo realista. Hoje sabemos que é possível viver com qualidade de vida com lúpus, o tratamento está cada vez mais avançado e é possível termos uma vida dita praticamente normal. Existem, claro, casos bastante graves de lúpus que precisam de mais adaptações no seu dia a dia, e mesmo os casos mais típicos, os menos graves, vivemos muitas vezes com dores e fadiga quase diárias. Felizmente hoje conhecemos várias formas de aprender a viver com esses sintomas, de os gerir e reduzir o seu impacto e recuperar a qualidade de vida. Em segundo lugar, a página surge também da necessidade de mostrar a importância da saúde mental para quem vive com uma doença crónica como lúpus, porque ainda é muitas vezes esquecida. Vamos regularmente ao médico, cumprimos os tratamentos para os sintomas físicos, mas esquecemo-nos da parte psicológica, que tem bastante impacto também nos nossos próprios sintomas do lúpus. Existem diversos fatores psicológicos que podem ajudar ou dificultar o nosso processo de adaptação ao lúpus e à nossa qualidade vida e, portanto, é importante cuidarmos da nossa saúde mental. Por último, a minha página tem já quase quatro anos de existência o que coincide com o início do meu doutoramento. Estou a terminar o doutoramento em Psicologia da Saúde, precisamente a estudar o processo de adaptação ao lúpus. O grande objetivo é desenvolver uma intervenção digital que permita as pessoas com lúpus viverem mais adaptadas ao mesmo, sobretudo terem crenças sobre o lúpus mais positivas e manterem um estilo de vida ativo aprendendo a gerir melhor os seus níveis de atividade, mesmo com dor e fadiga. Desde o início senti vontade em partilhar tudo o que vou aprendendo no meu doutoramento com quem tem lúpus. No fundo, retribuir a quem pode usufruir desta informação a oportunidade que tenho de estar no doutoramento. Por isso na minha página partilho, claro, a minha experiência pessoal, mas sobretudo informação credível e validada que poderá ajudar a conhecer, aceitar e controlar o lúpus.

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Guimarães celebrou o Dia Mundial do Lúpus com um conjunto de iniciativas. Consideras que a comunidade está sensibilizada e informada sobre a doença?

Penso que na comunidade em geral ainda existe muito desconhecimento sobre o que é o lúpus. Acontece-me muitas vezes de estar a falar com pessoas sobre lúpus e perceber que não fazem ideia do que é. Mesmo no meio académico onde eu trabalho faço algumas apresentações, dou aulas e muitas pessoas não sabem o que é o lúpus. Apesar de já existirem alguns famosos que por terem a doença têm feito algumas campanhas de sensibilização, o que tem ajudado muito a divulgação do lúpus, há ainda um grande caminho a percorrer em termos de o dar a conhecer à comunidade. E isto é importante por dois motivos principais. Em primeiro lugar, quando as pessoas conhecem a doença, já ouviram falar sobre a mesma, sabem quais são as principais dificuldades por que passa alguém que vive com lúpus. Quando contactarem com alguém com lúpus vão, com certeza, agir de forma mais empática e respeitosa. Ainda existe algum estigma para com quem tem lúpus, não só pelos seus sintomas visíveis, como as manchas ou o ganho de peso como consequência do tratamento, mas também pelos seus sintomas invisíveis. Por exemplo, é difícil explicar a alguém que nunca sentiu o que é ter fadiga, e poderá ser um sintoma negligenciado e incompreendido, mas que, para quem o sente, é bastante limitador. É natural sentirmos mais empatia pelo que conhecemos do que pelo desconhecido, por isso quantas mais pessoas souberem o que é o lúpus melhor. A outra razão é o facto de não sabermos a que porta o lúpus irá bater no futuro e uma comunidade mais consciente sobre os seus sintomas estará mais preparada para os reconhecer e procurar a ajuda certa. Em média, na Europa, uma pessoa pode esperar até dois anos para receber o seu diagnóstico de lúpus. Felizmente, em Portugal, estamos abaixo desta média e o tempo médio é de cerca de um ano. Ainda assim é muito tempo para que estejam com sintomas e muitas vezes sem o tratamento adequado, sem compreenderem o que têm, de médico em médico. Esta sensibilização da comunidade poderá com certeza ajudar a reduzir estes tempos de espera por um diagnóstico.

O lúpus incide sobretudo em mulheres e começa a manifestar-se, sobretudo, depois/durante a adolescência. Que conselhos dás às jovens mulheres?

Sim, é verdade. Nove em cada dez casos são do sexo feminino e acontecem sobretudo na idade fértil. O meu conselho principal é que olhem para o futuro de forma esperançosa e que vejam o lúpus como um desafio que devem abraçar, trabalhar para o conhecer, para aprender a viver com ele. Há um trabalho de aceitação a fazer, que poderá demorar o seu tempo, mas que é importante para nos permitirmos a ganhar ação e responsabilização pela nossa saúde. Quando eu falo de aceitação, não me refiro a resignarmo-nos ao lúpus e a aceitar tudo o que daí viver, pelo contrário, refiro-me a tomarmos ação para viver o melhor possível com ele. O lúpus passa a fazer parte da nossa vida, não a deve definir, nós somos muitas outras coisas, mas devemos tê-lo em consideração.

Que mitos ainda persistem à volta da doença?

Acho que o principal mito é que não é possível viver com qualidade com lúpus. Ainda existem alguns artigos na internet que ditam uma esperança média de vida para as pessoas com lúpus e que estão baseados em estudos muito muito antigos, que hoje em dia felizmente já não se aplicam. E, por isso, penso que este é o mito que é mais importante desmistificar para que quem recebe este diagnós- tico não pense que a sua vida acabou ou que tem poucos anos de vida ou que não é possível viver bem com o diagnóstico. Porque é possível vivermos bem e com qualidade e ter uma vida dita “normal” mesmo com o lúpus.

Existem outros mistos associados à doença, como as mulheres que têm lúpus não podem engravidar, que não é verdade. Deverá ser uma gravidez planeada e preferencialmente que aconteça num período de remissão do lúpus, mas é possível de acontecer e já há muitos exemplos disso mesmo. Pelas manchas que, por vezes, quem tem lúpus tem na pele, poderia pensar-se que o lúpus é uma doença contagiosa, mas é um mito e infelizmente grave porque pode ter muitas consequências sociais. Mas acho que já se está a dissipar, a maior parte das pessoas já não acreditam nele. Por outro lado, também podemos considerar mito o facto de as pessoas não acreditarem no impacto que as emoções têm na doença, porque têm bastante impacto, e daí a psicologia ter muito a dizer também no lúpus. Depois também não acreditarem que o nosso estilo de vida, como a alimentação e atividade física, têm impacto na doença. Penso que estes serão assim os mitos que mais me chamam à atenção e que eu própria acreditei em alguns deles quando tive o diagnóstico.

Que especiais cuidados devem ter as pessoas com a doença?

O primeiro que me vem logo à mente é o cuidado com sol. Como todos nós já ouvimos dos nossos médicos, o sol é o nosso maior inimigo e a investigação mostra que a exposição solar prolongada, em horas de maior calor ou sem proteção, pode ativar alguns sintomas do lúpus, incluindo de forma silenciosa. Ou seja, sem a pessoa sentir. Depois é muito importante a manutenção de um estilo de vida saudável e isto inclui a alimentação saudável, o exercício físico, sono com qualidade e na quantidade suficiente, cuidar da saúde mental e a gestão do stress que é também um dos grandes gatilhos dos sintomas do lúpus. É claro muito importante mantermos a adesão ao tratamento, termos as nossas consultas em dia, a vacinação. A relação que estabelecemos com a equipa médica é também muito relevante, é importante que nos sintamos seguros e acolhidos para participar ativamente no nosso processo de tratamento. Depois existem todos os outros cuidados associados a determinadas medicações que as pessoas com lúpus geralmente tomam e aí vai depender de cada uma delas.

Além dos evidentes efeitos no bem-estar físico, de que forma é que a doença pode afetar o bem-estar psicológico?

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Em termos de bem estar psicológico, podemos, em primeiro lugar, considerar os sintomas cognitivos do lúpus como a falta de memória, a confusão ou cansaço mental, a dificuldade de concentração. Portanto, por um lado, existem os próprios sintomas do lúpus que impactam o bem estar psicológico. Por outro lado, o facto de termos uma doença crónica é um fator que afeta o nosso bem estar psicológico por si só. Ou seja, tem de existir uma integração desta nova componente na nossa identidade, na forma como nos vemos e como nos vemos perante os outros. A forma como eu vejo o meu lúpus, o que penso sobre ele, a forma como eu me vejo enquanto pessoa com lúpus e como integro tudo isto tem impacto no meu bem-estar psicológico. Depois existem outros fatores psicológicos ou não que me podem ajudar ou prejudicar nesta adaptação ao lúpus, por exemplo, o apoio social é um fator que tem muito impacto e que, quando existe, torna toda esta carga bastante mais leve.

Tal como noutras doenças, a partilha de experiências é fundamental. Em Guimarães há alguma associação que apoie estas pessoas?

Em Guimarães especificamente não existe nenhuma associação, existe, no entanto, a Associação de Doentes com Lúpus a nível nacional, que tem sede em vários distritos do país, como Porto ou Lisboa. Conta já com 30 anos e tem como principais objetivos divulgar a doença e apoiar as pessoas com lúpus e as suas famílias, promover os seus direitos e a investigação sobre lúpus, assim como dinamizar a cooperação com outras associações internacionalmente. A associação faz ao longo do ano várias iniciativas importantes, como por exemplo o encontro anual de pessoas com lúpus, familiares e amigos em Lisboa. Uma das grandes vitórias da associação foi ter conseguido que, em Portugal, as pessoas com lúpus tenham acesso a uma portaria que faz com que não paguem a medicação.

Qual a informação que achas mais importante transmitir à comunidade sobre a doença?

Acho que o principal conselho que eu daria às pessoas que têm lúpus é para tentarem conhecer a doença através de fontes fidedignas de informação, para se rodearem de exemplos de superação e de pessoas que as possam ajudar, que tenham vivido os mesmos desafios, e que tenham também exemplos de esperança para dar. Depois, que tentem trabalhar no controlo da doença, em conhecer o seu lúpus – porque existe um lúpus para cada pessoa – e que tentem conhecê-lo para conseguir controlá-lo da melhor forma e sentirem-se mais eficazes a fazê-lo. E para juntar ao conhecer e controlar o lúpus, diria que é essencial trabalhar na aceitação do lúpus. Por isso eu diria que o principal conselho resumidamente é: conheçam e aceitem o lúpus, aprendam a viver com ele e a controlá-lo e que não deixem que seja ele a controlar a vossa vida.

Para a comunidade em geral gostaria de deixar a mensagem de que nem todas as doenças são visíveis, é impossível sabermos pelo que está a passar a pessoa que está à nossa frente. Como não sabemos, não podemos assumir que, por ter um ar jovem ou saudável, está tudo bem com ela. Muitas vezes não é assim. Estejam abertos para conhecer outras realidades sem julgamento e para acolher a realidade do outro com empatia sempre que a queira partilhar connosco.

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