Em cada casa um amigo: este ano, lembramos a Liberdade de forma diferente

Este ano, o dia da liberdade celebra-se sem que se possa sair à rua, ao contrário do que aconteceu em todos os outros anos de democracia.

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O país prepara-se para uma celebração atípica do Dia da Liberdade, mas a efeméride “não vai passar em claro” em Guimarães. Afinal, os valores de Abril – “solidariedade, tolerância, democracia e cidadania responsável” – transcendem qualquer pandemia.

© Chayenne Zanol/Unsplash

Há 46 anos, José Fernando Silva teve uma vista privilegiada sobre a Revolução de Abril. Era fuzileiro e estava prestes a terminar o curso de telefuso, na Base Naval de Alfeite. Apenas o Tejo o afastava da revolução que pôs fim ao regime ditatorial do Estado Novo, vigente desde 1933.

Ainda assim, o momento em que o vimaranense percebeu que algo de diferente se passava foi semelhante ao de muitos outros: através da rádio. “Na Base Naval do Alfeite, de madrugada, um colega meu que tinha a rádio sempre debaixo da travesseira disse que havia problemas em Lisboa. Só se ouvia música estranha”, brinca. Sem saber exatamente o que se passava, logo ao pequeno-almoço souberam que tinham de ficar de “prevenção”. “Cada um foi buscar uma arma ao armeiro e víamos passar os aviões. Naquele dia não saímos dali”, recorda.

José Fernando Silva
©  Direitos Reservados

A 26 de abril, a turma de José foi recrutada para ir para a Rua António Maria Cardoso, onde se localizava a sede da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). Ainda antes, a 25 de abril, houve duas tentativas de ocupação da sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, feitas pelas tropas do Movimento das Forças Armadas, mas só às 09h46 do dia seguinte se verificou a rendição, sendo o edifício então ocupado por forças do Exército e da Marinha. “Durante o dia 26 vinham entregar-se os cozinheiros, despenseiros… Era malta que não tinha nada a ver com os que andavam pelas casas e a prender pessoas. Fechámos um cordão. Estávamos 15. De vez em quando, aparecia lá uma pessoa e vinha entregar-se porque trabalhavam lá”, explica. Na altura, fazer aquele “cordão” foi “uma surpresa” para o vimaranense. “Muita gente que morava ali à beira nem sabia que era ali a PIDE”, recorda. Os dias seguintes foram de festa, garante. “As pessoas começaram a ir para as ruas e a colocar cravos vermelhos nas espingardas. Íamos tomar café e era pago. Íamos comer alguma coisa e era pago. Até dia 1 de maio foi uma festa, as ruas cheias de povo. Depois, voltou tudo à normalidade”, conta.

Posteriormente, José Fernando Silva, na altura com 23 anos, foi destacado para fazer serviço na Assembleia da República. “Antigamente, no tempo do fascismo, quem fazia era Guarda Nacional Republicana e depois andamos a fazer nós, dia sim, dia não. Fiquei contente”, admite.

Agora a residir na freguesia de Brito, José Fernando Silva olha para trás e admite que atualmente “há mais liberdade”. “Foi uma coisa boa. Que não haja dúvidas que melhorou muito. Quem passou por aquilo não quer que passar novamente. Vivemos uma ditadura muitos anos e naquele tempo as pessoas eram oprimidas. Não podíamos dizer nada”, lembra.

Atualmente em isolamento, o vimaranense assume que é importante “obedecer às recomendações” do Governo e da Direção Geral de Saúde, mas, acima de tudo, é importante celebrar Abril. “Não podemos celebrar em conjunto, porque não pode haver multidões, mas temos de comemora à nossa maneira”, aponta.

Celebrar o 25 de Abril sem sair à rua

Este ano, o dia da liberdade celebra-se sem que se possa sair à rua, ao contrário do que aconteceu em todos os outros anos de democracia. Nesse sentido, a data não passará em branco em Guimarães. Sem poder comemorar o 25 de Abril com atividades presenciais, a Associação de Socorros Mútuos Artística Vimaranense (ASMAV) desenvolveu iniciativas digitais para celebrar a Revolução dos Cravos. A primeira é coorganizada com o Mais Guimarães. No dia 24 de abril, pelas 18h00, há debate em direto na página do Facebook da ASMAV e do Mais Guimarães e o tema não poderia ser mais atual: “Está a pandemia a ameaçar a democracia?” é a questão a discutir por André Freire, José Adelino Maltez e Francisco Teixeira, numa conversa moderada por Rui Dias. Depois, às 22h00, estreia um filme de 07 minutos “alusivo ao trabalho social e cívico da ASMAV, comemorativo e homenageando o 25 de abril de 1974”, lê-se em comunicado da associação. “Estando embora o país em estado de emergência, por razões sanitárias, não só a democracia não está suspensa como se exige, ainda mais, o exercício crítico e atento dos direitos fundamentais”, frisa ainda o comunicado assinado pela presidente da direção da ASMAV, Eva Machado.

©  Direitos Reservados

Por sua vez, a Câmara Municipal de Guimarães elaborou “um programa cultural que será totalmente transmitido online”, a partir da página do Facebook do município, sendo aberto à participação da população. É o #LiberdadeEmCasa. A autarquia quer que a população assinale o 25 de Abril “publicando uma mensagem onde diga o que é a Liberdade”. “Pode ser uma frase, um poema, uma música, um desenho, em vídeo, imagem ou texto”, mas tem de ser feito “de forma pública e utilizando o hashtag #LiberdadeEmCasa”, explica comunicado. É ainda “fundamental ter a mensagem com um cravo na mão, um cravo do jardim, um cravo desenhado ou construído”. A mensagem pode ainda ser enviada para o e-mail cultura@cm-guimaraes.pt.

Às 00h20 do dia 25, será transmitida, via Facebook, a música “Grândola Vila Morena” de José Afonso, pela Banda Musical de Pevidém e Coros de Guimarães, sob direção artística de Vasco Faria. Às 17h00 do mesmo dia realiza-se o concerto em livestreaming “Outros Palcos, Mais Liberdade”, integrado na comemoração da Revolução dos Cravos. O espetáculo será gravado em local aberto, “com todas as medidas de higiene e segurança recomendadas” pela Direção-Geral da Saúde e pela Organização Mundial da Saúde. O concerto já tinha sido programado “há vários meses” em parceria com a associação cultural vimaranense Astronauta e foi adaptado às circunstâncias atuais.

“Enquanto há esperança, há sempre vontade de festejar Abril”

Quem percorre com alguma regularidade a N101 já deve ter dado por ele. Um mural às portas da vila de Caldas das Taipas captura facilmente a atenção de condutores e transeuntes: as cores vermelhas dos cravos, mergulhados nos canos das espingardas dos soldados, destoam das fachadas esbranquiçadas e das cores acinzentadas, próprias da proximidade a zonas urbanas. Quem pintou este mural, também o assinou. Uma das siglas na parede diz que um dos autores é o “NE 25 de Abril”.

Chama-se “Mural da Liberdade” e é apenas um exemplo do trabalho que o Núcleo de Estudos (NE) 25 de Abril tem vindo a desenvolver ao longo de cerca de dez anos. O objetivo de iniciativas como esta – que tem, obviamente, mais visibilidade – é explicado de forma expedita pelo coordenador, Amadeu Faria: “Promover, junto dos alunos, e depois nas comunidades, o espírito de Abril, pautado pela solidariedade, tolerância, democracia, e de cidadania responsável”. O muro começou a ser pintado em 2019 e é exemplo da articulação com as escolas e com a comunidade.

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O que começou por ser um projeto adstrito a um agrupamento específico (Agrupamento de Escolas de Briteiros), cresceu e transforma-se, a partir de 2011, num grupo independente. “[O Núcleo] deixou de estar alocado a uma escola e passou a ser um grupo cívico composto por 16 pessoas. Nos tempos livres desenvolvemos atividades nas escolas e também nas comunidades. O que fazemos não é diferente do que fazíamos desde o início – promover o espírito livre. Sempre com uma ligação fortíssima às escolas”, relata Amadeu Faria.

“Não vamos deixar o dia passar em claro”

E é a partir das escolas que o “espírito de Abril” é fomentado e, muitas vezes, catapultado para a restante comunidade. Mas como cativar os mais novos, os que não são “jovens de 1974”, e debelar o impacto de um possível desfasamento entre a juventude e a data assinalada? “Não é muito difícil”, afirma o coordenador. Basta, assegura, mostrar-lhes “o que Abril trouxe” e, com isso, a tarefa “não se torna nada difícil”. “Desde que seja explicado o que é feito e o porquê de ser feito, nunca tive um grupo de alunos a quem lhes fosse lançado um desafio e eles não o fizessem”.

Um dos desafios referidos por Amadeu Faria é o “Livre com um livro”, um espetáculo que engloba um conjunto de leituras encenadas sobre a Liberdade, que conta com a participação de alunos de vários agrupamentos do concelho vimaranense. “Cada biblioteca escolar dos agrupamentos convidados envia dois miúdos. Eles têm ensaios e na data aprazada faz-se o espetáculo. O que é que isto provoca? Uma blackbox – do Centro Cultural Vila Flor – cheia de pais, familiares e professores”. É a partir destas iniciativas que o NE 25 de abril leva a “chama” de Abril a outros públicos, numa espécie de efeito de bola de neve.

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No entanto, este ano, uma pandemia impediu que a agenda do NE 25 de abril se concretizasse. O país prepara-se para uma celebração atípica e Guimarães não é exceção. A organização anunciou, em março, que os eventos agendados estavam cancelados. Entre eles, o espetáculo “Vozes de Abril”, que iria prestar homenagem a José Mário Branco; um debate que traria, entre outros nomes, a antiga Secretária de Estado da Educação, Ana Benavente, à Escola Secundária de Caldas das Taipas (ESCT) e a expansão do “Muro da Liberdade” – pintado inicialmente por alunos do Agrupamento de Escolas das Taipas, Agrupamento de Escolas de Briteiros e ESCT –que, este ano, estaria ali à disposição da comunidade para pintar Abril.

A pandemia de covid-19 pode ter condicionado a celebração, mas Amadeu Faria é contundente: “Não vamos deixar passar o dia em claro”.

Entre os planos, está a publicação de textos de “amigos” – Sampaio da Nóvoa, Vasco Lourenço, Ana Benavente e do presidente da Junta de Freguesia de Caldelas, Luís Soares, entre outros – na página de Facebook do Núcleo. O NE 25 de Abril vai também divulgar um site feito pelo grupo de estágio de História da ESCT e por duas turmas acerca do tema “Abril no femino”, “o grande mote para este ano”.

No site, vão estar disponíveis 46 biografias de “46 lutadoras pela liberdade em Portugal, de várias épocas”. É pouco, comparativamente aos anos anteriores”, pergunta o coordenador, para resposta pronta: “É, mas enquanto há esperança, há sempre vontade de festejar Abril”.

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