Inadiáveis Leituras: “Latitudes de Liberdade”
Por Sílvia Lemos.
Por Sílvia Lemos
Já ouço as músicas que me fazem estremecer. Aos vinte e cinco dias do mês de abril do ano 1974 estava no ventre de minha mãe e no abraço do meu pai e acho que aprendi aí a palavra Liberdade. Tenho em mim a herança da alegria e da esperança daquele dia. Os livros censurados iriam ser todos lidos em voz alta.
Deve ser por causa disto tudo que não baixo braços. Tenho flores para carregar.
Deve ser por causa disto tudo que vou buscar para as Inadiáveis Leituras deste mês Luis Sepúlveda à memória…ele que deixou as nossas ruas e que voou em abril, há três anos. Ele que, lá no Chile, naquele ano de flores na rua em Portugal, ainda estava preso e sabia que estava a ganhar. Alegram-se os justos sempre que cai uma ditadura. Não há prisão que os amedronte.
Sepúlveda traz-me o sabor da luta e da resistência, da doce alegria da presença do Outro. Sabe de que é feita a fraternidade. Ele saboreia a fraternidade e emociona-se com o sofrimento dos outros e com a perda, mas não imprime na pele o ódio e a amargura. Gosta do vento e do mar e da selva. Partilha o pão, partilha o vinho, a conversa longa, a vida vagarosa. Arrisca histórias impossíveis. Viaja por todas as latitudes em busca de liberdade. Dá-nos “A história da gaivota e do gato que a ensinou a voar” e depois “A história de um gato e de um rato que se tornaram amigos”. Escreve muito, escreve com disciplina, que a memória é coisa séria, e não quer esquecer o “Velho que lia romances de amor” ou o “Encontro de amor num país em guerra”.
É ativista porque a liberdade vem longe e a natureza corre perigo e o pensamento e o coração transformam tudo em ações.
É militante, é voluntário “entre banhos frios no Pacífico e aulas de Matemática, entre sopas coletivas e cursos de Filosofia, entre bosques aromáticos e poemas que impregnavam a noite”. Escreve para nos contar vidas de ferroviários e de pastores, para descrever aquele “Patagónia Express”, para nos por em viagem, escreve a dar-nos as “Últimas notícias do sul”, escreve para insistir em mais “Crónicas do Sul”, de homens e mulheres de mil geografias. Escreve para denunciar e anunciar “O general e o Juiz”. Escreve para revelar “O poder dos sonhos” e “Uma ideia de felicidade”.
Que intensa vida se revela, no “Mundo Sepúlveda”.
Escrevo intencionalmente no presente, porque habita o eterno presente.
Todos os seus livros continuam a levar-me de viagem à política, aos companheiros, aos operários e camponeses, aos presos, aos torturados, a tudo o que não me aquieta, a tudo o que me emociona, mas também ao sabor da amizade, ao amor, ao tempo da paz e do descanso urgente. Vou ao sul do mundo, à aridez, ao azul e às intensas cores. Já oiço a música e o povo. Sigo ao norte, às ruas da velha Europa sempre a reconstruir democracias, a fazer a guerra à procura de paz.
Invariavelmente vou parar aos escritos de autores que pressinto pertencerem à mesma essência. Partilharam a mesa. Partilharam preocupações. Vou parar ao Miguel Carvalho, grande repórter da Revista Visão, e à sua “Amália – Ditadura e Revolução – A história secreta”. Miguel Carvalho a revelar a sua Amália, a nossa Amália a cantar para o regime e a subsidiar revoluções, a revelar a noite de Amália fora do brilho do palco, a noite escura à procura de luz. Miguel Carvalho a escrever o país. Inspira-me tanto a sua bondade, o desejo insaciável de verdade. O desejo de acordar os idiotas úteis. Sempre a trabalhar revelando as faces invisíveis da história. Ofício bonito e corajoso a tecer História diariamente.
Leiam tudo, leiam o que de tanto e tão bom escreveram estes meus autores de abril. São todas inadiáveis, estas leituras.
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