Ivo Martins e o Guimarães Jazz: 34 anos de liberdade, improviso e descoberta

Entre os dias 6 e 15 de novembro, Guimarães volta a ser o epicentro do jazz em Portugal. O Guimarães Jazz celebra a sua 34.ª edição, reafirmando o lugar de destaque que ocupa no panorama nacional e europeu deste género musical.

© Eliseu Sampaio / Mais Guimarães

Durante dez dias, os sons do improviso, da tradição e da experimentação vão ecoar pelos principais palcos culturais da cidade, o Centro Cultural Vila Flor (CCVF), o Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG) e a Associação Convívio, que voltará a ser o espaço de encontro mais livre e informal do festival, com oficinas e jam sessions abertas ao público.

A edição de 2025 volta a reunir nomes maiores do jazz internacional: Immanuel Wilkins, Maria João com a Orquestra de Guimarães, Fred Hersch, Danilo Pérez com a Bohuslän Big Band, Mark Turner, Craig Taborn, Tomeka Reid, Ches Smith e André Carvalho compõem um cartaz que equilibra o prestígio de artistas consagrados com o risco criativo das novas gerações.

Fiel ao seu espírito de descoberta e partilha, o Guimarães Jazz mantém-se como um espaço de encontro entre geografias, gerações e linguagens, onde o jazz é entendido não como um género fechado, mas como um campo de possibilidades. O festival, organizado pela Oficina, volta a apostar em projetos paralelos, colaborações com instituições como a Porta-Jazz e a Sonoscopia e na formação de jovens músicos, consolidando o seu papel como plataforma de criação, experimentação e transmissão de conhecimento.

“Há 34 anos que fazemos experiências”: o testemunho de Ivo Martins

À conversa com o Mais Guimarães, Ivo Martins, diretor artístico do festival, fala com serenidade sobre o percurso de mais de três décadas de trabalho, feito de conquistas, riscos e aprendizagens: “A gente faz isto há 34 anos. Há uma história, muito trabalho feito, muita coisa acumulada. Umas boas, outras menos boas. É um festival que tem tentado fazer experiências, e daí o risco de, às vezes, as coisas não correrem tão bem. Mas é esse risco que nos mantém vivos.”

Para Martins, o Guimarães Jazz é mais do que um evento musical, é um processo de descoberta contínua. A memória da construção do festival está cheia de episódios que hoje soam quase míticos: os primeiros convites feitos por fax, o contacto direto com artistas e agentes que mal conheciam Portugal, a luta constante para garantir orçamentos que permitissem trazer nomes relevantes sem comprometer a sustentabilidade do evento.

“No início, contactávamos músicos por fax, literalmente enviávamos mensagens para o cosmos. Muitas vezes não sabíamos se iriam responder. Íamos descobrindo nomes pelas revistas especializadas de jazz, que elegiam os melhores músicos do ano, os mais promissores. Comprávamos discos lá fora, ouvíamos, estudávamos. Era um trabalho artesanal.”

Ao longo de 34 anos, passaram por Guimarães artistas que, em muitos casos, se tornaram referências internacionais. Martins recorda com carinho alguns desses momentos:

“Trouxemos cá os Vandermark Five, quando quase ninguém os conhecia. Lembro-me de ligar diretamente para casa do Ken Vandermark, em Chicago. Vieram cá por volta de 1998. E depois houve o Django Bates com a sua big band Delightful Precipice, o John Zhang, pianista de Los Angeles, que misturava o folclore chinês com instrumentos ocidentais. Coisas incríveis.”

© Eliseu Sampaio / Mais Guimarães

Essa capacidade de arriscar e de descobrir tem sido uma marca constante. O Guimarães Jazz nunca se quis limitar a uma estética única. Para Ivo Martins, o jazz é um universo em expansão, onde a distância entre o tradicional e o experimental é apenas uma questão de perceção: “Não diria que nos afastamos do jazz tradicional. O jazz é um universo. O que marca as distâncias somos nós. Retirando a pessoa da equação, tudo é perto e tudo é distante. É preciso fazer voos especulativos sobre a música, sobre as emoções que sentimos, sobre o que construímos. É disso que vive o jazz.”

Maria João, Wilkins, Hersch e o futuro que se improvisa

A edição de 2025 espelha esse mesmo espírito de liberdade. O concerto de Maria João com a Orquestra de Guimarães é apontado como um dos momentos altos: “A Maria João é uma das grandes cantoras europeias de jazz. Ela improvisa o tempo todo, constrói o seu próprio mundo musical. É impossível ficar indiferente. Vai ser um espetáculo muito particular, que também será um grande desafio para a Orquestra de Guimarães.”

Outro destaque será o regresso de Fred Hersch, pianista norte-americano reconhecido pela sua elegância e lirismo, e a atuação de Danilo Pérez com a Bohuslän Big Band, numa proposta que cruza tradição e modernidade. A presença de jovens nomes como Immanuel Wilkins e Tomeka Reid reafirma o compromisso do festival com a renovação e o futuro do jazz.

“Nós nunca dominamos o que fazemos”, confessa Martins. “Dependemos sempre dos músicos. Às vezes criamos expectativas e, no final, são outros que nos surpreendem. E isso é maravilhoso. O fracasso também faz parte, é ele que nos ensina e nos obriga a ir mais longe.”

A formação como missão

Para além dos concertos, o Guimarães Jazz distingue-se pelo trabalho educativo que desenvolve com escolas, conservatórios e instituições de ensino artístico. A colaboração com a ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo) é hoje uma das pedras angulares do festival. Jovens músicos participam em residências artísticas, workshops e jam sessions que decorrem na Associação Convívio, criando uma ponte entre o ensino e a prática real do jazz.

“O festival não pode resolver os problemas do jazz português, mas pode abrir portas. Há cada vez mais jovens a tocar, com grande formação e competência técnica. Isso obriga-nos a ser melhores, mais rigorosos, mais verdadeiros. O Guimarães Jazz tem de ser uma porta aberta, um espaço de aprendizagem e partilha.”

Essa dimensão formativa é também o que assegura a continuidade do festival. Martins sublinha que o Guimarães Jazz é um ecossistema: músicos, estudantes, técnicos, instituições e público constroem em conjunto um espaço de criação coletiva.

Convívio: o coração improvisado do festival

Se o CCVF e o CIAJG são os palcos da excelência, a Associação Convívio é o coração pulsante do Guimarães Jazz. É ali que, noite dentro, músicos e público se misturam nas jam sessions, momentos únicos de espontaneidade e comunhão.

“Esses encontros são extremamente enriquecedores”, diz Ivo Martins. “É uma partilha a todos os níveis, para os músicos, para o público, para quem organiza. Isto é de Guimarães, pertence à cidade. É um festival que acontece num período de outono, quando as pessoas estão mais retraídas, e vem reanimar o espírito coletivo.”

Com mais de três décadas de história, o Guimarães Jazz atravessou mudanças tecnológicas, políticas e culturais, resistindo sempre com uma energia que o próprio diretor artístico define como “teimosa e improvável”. “Quando comecei, se me dissessem que isto ia acontecer assim, 30 anos depois, eu não acreditava. Trabalha-se muito, mas também é preciso sorte. Há momentos em que tudo converge, como quando conseguimos fazer o festival em pleno COVID. Foi inacreditável. Adaptámo-nos, trabalhámos com músicos residentes em Portugal, e o festival aconteceu. Isso diz muito sobre o nosso potencial.”

Com a recente mudança política na Câmara Municipal de Guimarães, Martins deseja apenas continuidade e estabilidade: “O mais importante é o festival existir. Existir com força. Eu não vou durar sempre, mas o Guimarães Jazz tem de ficar. É parte da identidade cultural da cidade.”

Quando questionado sobre o significado pessoal do festival, Ivo Martins sorri: “É um festival querido. No mínimo, muito querido. Porque foi assumido desde o princípio com paixão e persistência. Temos uma equipa grande, muita gente invisível, mas essencial. Eu dou a cara, mas isto é o trabalho de todos.”

E é com essa humildade que o Guimarães Jazz chega à sua 34.ª edição: fiel à improvisação, às vozes que o moldaram e ao público que o acompanha ano após ano. Um festival que é, acima de tudo, um ato de resistência poética, contra o esquecimento, contra a pressa, contra a ideia de que o jazz é passado.

© Mark Turner

“O concerto é o ponto culminante, a epifania. Tudo se acumula ali. E quando termina, já estamos a pensar no próximo. Talvez seja isso o segredo, continuar a improvisar.”

Guimarães, novembro e o som do mundo

De 6 a 15 de novembro, a cidade berço volta a abrir as portas à liberdade do jazz. Entre notas que ecoam no CCVF, improvisos no Convívio e descobertas que nascem da curiosidade, o Guimarães Jazz 2025 promete uma edição de excelência, marcada pela diversidade e pela emoção.

Trinta e quatro anos depois, o festival continua a provar que o jazz não é uma nostalgia, é uma linguagem viva, mutável, feita de encontros e de coragem.
E, como diz Ivo Martins, talvez também de um pouco de sorte.

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