Privados faturam milhões com utentes enviados pela ULS Alto Ave

Enfermeiros e auditoria interna questionam o sistema de referenciação para cuidados continuados que permite que unidades de saúde privadas faturem milhões de euros anuais com pessoas a aguardar vaga na rede.

© Eliseu Sampaio/ Mais Guimarães

A ULS Alto Ave (antes, Hospital Senhora da Oliveira) está entre as que mais utentes referenciam para a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI), no SNS. O número de doentes enviados para esta rede pela ULS Alto Ave é, aproximadamente, três vezes superior ao que acontece no Hospital de Braga e ultrapassa mesmo hospitais centrais, como o São João, no Porto. Uma vez que as instituições públicas de cuidados continuados não conseguem absorver todas estas pessoas, elas são enviadas para camas de retaguarda, contratadas a privados. Os critérios de referenciação da ULS Alto Ave são questionados pelos enfermeiros que trabalham  em cuidados continuados e o próprio departamento interno de auditoria já expressou reservas a este sistema. A administração da ULS Alto Ave aponta a “necessidade de contratualizar camas supletivas para complementar a capacidade de acomodação dos utentes”, mas não apresenta justificações para a diferença do número de referenciações face a outras unidades do SNS

No período entre 2015 e outubro de 2024, na Região Norte, a ULS Alto Ave  foi sempre a que mais utentes referenciou para a RNCCI, destacando-se do vizinho Hospital de Braga ou do, muito maior, Hospital de São João, no Porto. Durante o corrente ano, o Hospital de Braga, que serve um território com uma população que ultrapassa o milhão de habitantes, referenciou para a RNCCI, até 31 de outubro, 464 utentes. No mesmo espaço de tempo, o Hospital Senhora da Oliveira, que tem uma área de influência direta e de atração de 450 mil habitantes, enviou para a rede 1542. Anualmente, a unidade do Ave manda para a rede quase duas mil pessoas, já o Hospital de Braga nunca atingiu as setecentas.

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Doentes a aguardar vaga em cuidados continuados alimentam o setor privado

A RNCCI não consegue, de imediato, absorver todos os utentes referenciados. Em outubro, apenas na Região Norte, havia mais de 21 mil pessoas em lista de espera. Enquanto aguardam a entrada na rede, os utentes com alta hospitalar e indicação para cuidados continuados são colocados em camas de retaguarda, contratadas, na maioria, ao setor privado. A ULS Alto Ave afirma que duplicou de oito para 16 o número de camas de retaguarda, em Cabeceiras de Basto, e diz que já tem autorizada uma nova unidade, com 20 lugares, em Celorico de Basto, mas os utentes à espera de vaga em cuidados continuados são, em grande medida, encaminhados para o setor privado.

Negócios de milhões para unidades privadas

Embora a ULS Alto Ave não tenha respondido à pergunta sobre o valor da despesa com  com a contratação de camas em instituições externas para doentes com alta a aguardar entrada na RNCCI, o MG teve acesso a documentos que apontam para o direcionamento: para o Hospital Agostinho Ribeiro, em Felgueiras (175 mil euros, em 2023 e 182 mil, em 2024), Unidade de Saúde S. José Medelo, em Fafe (619 mil euros, em 2023 e 383 mil em 2024), e mesmo de doentes sem alta, para a Unidade de Saúde de Riba d’Ave (853 mil euros, em 2023 e 434 mil, este ano); e para unidades do Grupo Trofa Saúde (aproximadamente quatro milhões de euros em 2023 e, 2,6 milhões de euros, em 2024).

Apesar de a ULS Alto Ave alegar que estes negócios obedecem à contratação pública, no portal que reúne estes documentos, só é possível encontrar duas aquisições de camas para doentes com alta a aguardar entrada na RNCCI, pelo Hospital Senhora da Oliveira: uma em 2023, por ajuste direto, justificado “por motivo de urgência imperiosa resultantes de acontecimentos imprevisíveis”, no valor de 291 mil euros, com um custo diário unitário de 87,99 euros mais IVA; e outra, em 2024, por concurso público, no valor de 740 mil euros, sem referência ao custo diário unitário. Em ambos os casos a adjudicação foi feita ao Hospital Privado de Braga (Grupo Trofa Saúde) e, embora o número de camas contratadas seja o mesmo (48 de janeiro a março, 32 de abril a outubro e 48 de novembro a dezembro), o preço total é muito diferente. Não se percebe e a ULS Alto Ave não esclareceu, qual foi o acontecimento imprevisível, em 2023, para justificar o ajuste direto.

© Direitos Reservados

Auditoria interna e enfermeiros de cuidados continuados questionam o sistema de referenciação

Apesar do número de utentes referenciados para RNCCI pelo Hospital Senhora da Oliveira ter sido sempre comparativamente alto, em 2021 houve um aumento significativo: dos 1089, em 2020, passou para 1965. Em 2022 e 2023, o número de utentes enviados para a RNCCI manteve-se estável, 1943 e 1888 respetivamente. Vários enfermeiros que trabalham em cuidados continuados confirmam que, independentemente dos contratos com o Grupo Trofa Saúde, os utentes da ULS Alto Ave continuam a ser enviados para camas de retaguarda em outras unidades privadas da região. Estes profissionais questionam os critérios de referenciação que na sua opinião levam a que pessoas que não precisam destes tipo de cuidados sejam enviadas para rede, com o que isso significa de custos a para o erário público e ocupação de vagas que deveriam ser para pessoas que realmente precisam delas.

Em 2020 o valor gasto na aquisição de camas externas andou próximo dos 10 milhões de euros

Em 2022, o próprio Serviço de Auditoria Interna do Hospital Senhora da Oliveira exprimia o mesmo tipo de preocupação no seu relatório. O documento refere um aumento do valor com o internamento de doentes em camas externas ao hospital. Dizem os auditores que, em 2020, o valor foi de 9,98 milhões de euros, representando um aumento de 119,37% face aos 4,51 milhões de euros de 2019. “Por ser materialmente relevante, este crescimento, salvo melhor opinião, merecia uma avaliação/auditoria ao internamento fora do SNS”, aconselham. O relatório menciona que foram emitidas dez recomendações sobre este tema, que oito delas não foram implementadas e que duas estavam a 50%. Os auditores apontavam para um novo follow-up em 2023. Na página da ULS Alto Ave, porém, o único relatório de auditoria disponível é o de 2022 e, apesar dos pedidos, a administração não apresentou mais nenhum documento.

A ULS Alto Ave alega que a necessidade de camas supletivas está identificada pela ARS Norte, desde 2018, por a unidade apresentar taxas de ocupação superiores a 110%, no inverno e garante que a aquisição destas camas “tem sido feita ao abrigo da contratação pública”. Ficaram sem resposta questões sobre: a razão para uma tão alta referenciação para RNCCI; os valores anuais gastos em camas de retaguarda; quais as instituições privadas escolhidas para receberem estes doentes; e de quem a responsabilidade de fazer a escolha das unidades para onde são enviados os utentes.

Jornalista Rui Dias

 

 

 

 

 

 

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