Sorte do caraças…
Por Carlos Guimarães.
por Carlos Guimarães
Médico urologistaO lamento existe. Talvez seja como aquele gemido inapropriado dos pequenos gestos que nada doem. Talvez o lamento seja tão inapropriado como o tal gemido. Talvez seja injusto considerar que umas gotas de chuva se assemelhem a uma nuvem em cima das nossas cabeças. Calma, a sorte persegue-nos; sim porque eu continuo a escrever e tu a ler. Estamos cá, é certo que meio apanhados da cabecinha, mas estamos de pé. Sorte do caraças e nem damos conta disso. É provável que as coisas não tenham mudado assim tanto, o azevinho manteve as bolinhas vermelhas e os musgos continuam verdes. Houve prendas embrulhadas, o bacalhau “à maneira” e doçarias “à fartazana”. A escumalha continua escumalha e a gente boa não se extinguiu, nem a fome, nem a miséria, nem a dor ou as feridas. Sempre vivemos com o bom e o maligno, foi sempre assim, nada mudou e habituamo-nos viver com isso. A gente vai-se habituando. Tem dias em que sorrimos, dias cantarolados, dias convividos, dias fodidos. Foi sempre assim, nada mudou, a gente vai-se habituando, haja juizinho. A terra gira todos os dias. Foi sempre assim, nada mudou. Vamos continuar.
Nem tudo é brilho, nem tudo é baço.
Aquilo que todos queríamos há um ano atrás não aconteceu, ou antes, aconteceu, estamos cá. Arrependo-me de coisas que não fiz e deveria ter feito, mas todos os anos foi assim. Há sempre algo que fica para trás, há sempre perdas, danos irreparáveis e outros pequenos riscos na pintura. Nem tudo é brilho, nem tudo é baço. A racionalidade nem sempre é justa, como a vida, nem sempre colocamos o coração adiante, ou a intuição, ou nós próprios, e quando o pano cai, afinal o palco poderia ter sido outro, mas tivemos palco e temos a esperança de continuar a ter.
Vi idiotas com sorte, prepotentes vencedores, corajosos derrotados, insensatos a troçar, ingratos a crescer. Nada de novo, nada que me espante. Tive noites de insónia e dias de lucidez com palavras por dizer e gestos por fazer. Abri envelopes com comboios a alta velocidade prontos a trucidar alguém, olhares de pânico, lágrimas retidas e outras a correr. Vi demasiada loucura, intolerância, conflito e dor (a dor é sempre demasiada). Vi bondade e compaixão. Vi crueldade, maldade, inveja e mentira. Vi risos e sorrisos, vitórias e derrotas, dias a cores e a preto e branco. Vi um ano igual a tantos outros com as particularidades que cada ano tem e onde nem tudo é “instagramável”.
Nasce todos os dias, se puderes e contempla o nascer do sol longe da memória do sol do dia anterior. Assim faz mais sentido.
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