CARLOS DO CARMO E O “RESPEITO POR CADA PALAVRA” QUE CANTAVA
A importância de Carlos do Carmo no fado não resulta, apenas, de ser provavelmente o maior intérprete que o fado conheceu. Ser a canção uma composição musical para a voz humana com base num texto e acompanhada por instrumentos musicais –fórmula tão clara!- nem sempre surge tão evidente quando se ouve alguém cantar com acompanhamento instrumental.
Texto de César Machado
A importância de Carlos do Carmo no fado não resulta, apenas, de ser provavelmente o maior intérprete que o fado conheceu. Ser a canção uma composição musical para a voz humana com base num texto e acompanhada por instrumentos musicais –fórmula tão clara!- nem sempre surge tão evidente quando se ouve alguém cantar com acompanhamento instrumental. Dito de outro modo:- raramente se ouve alguém cantar com tanto respeito por cada palavra, por cada sílaba de cada palavra, como faz Carlos do Carmo. Muito raramente. Este é um enorme crédito a favor de Carlos do Carmo. O cumprimento rigoroso do seu mister que é cantar poemas, palavras de outros.
Tome-se o enorme exemplo de “Gaivota”, de Alexandre O’Neil; oiçam-se as versões da grande Amália e de Carlos do Carmo; introduza-se uma pergunta politicamente incorrecta:– qual das versões coloca em primeiro plano “o que se canta” em vez de “quem canta”? -em que versão se percebe cada sílaba do O’Neil? Amália “estilava” singularmente e em grande! O poema ganha com isso? Não parece.
A celebração da poesia –que também é um exercício de humildade diante do que é cantado- encontra em Carlos do Carmo uma arte maior ilustrada em centenas de exemplos. Nenhuma sílaba se perde a favor de um floreado melódico, aliás ao alcance do cantor. Os “desvios” com que pontua e pessoaliza a canção nunca se sobrepõem ao que diz. A isto pode chamar-se muitas coisas – humildade parece-me o termo certo. (Só não se trata de um caso único no nosso meio porque existe José Afonso, um outro “dinossauro da música europeia”, como lhe chamou, em tempos, uma publicação francesa, ali pela mesma ocasião em por cá foi atribuído o prémio de pior disco do ano a “Com as Minhas Tamanquinhas” por certos críticos representativos da nossa mais alta “intelligentsia” musical).
Dito de outro modo: raramente se ouve alguém cantar com tanto respeito por cada palavra, por cada sílaba de cada palavra, como faz Carlos do Carmo. Muito raramente. Este é um enorme crédito a favor de Carlos do Carmo. O cumprimento rigoroso do seu mister que é cantar poemas, palavras de outros. Tome-se o enorme exemplo de “Gaivota”, de Alexandre O’Neil; oiçam-se as versões da grande Amália e de Carlos do Carmo; introduza-se uma pergunta politicamente incorrecta:– qual das versões coloca em primeiro plano “o que se canta” em vez de “quem canta”? -em que versão se percebe cada sílaba do O’Neil? Amália “estilava” singularmente e em grande! O poema ganha com isso? Não parece. A celebração da poesia – que também é um exercício de humildade diante do que é cantado – encontra em Carlos do Carmo uma arte maior ilustrada em centenas de exemplos. Nenhuma sílaba se perde a favor de um floreado melódico, aliás ao alcance do cantor. Os “desvios” com que pontua e pessoaliza a canção nunca se sobrepõem ao que diz. A isto pode chamar-se muitas coisas – humildade parece-me o termo certo. (Só não se trata de um caso único no nosso meio porque existe José Afonso, um outro “dinossauro da música europeia”, como lhe chamou, em tempos, uma publicação francesa, ali pela mesma ocasião em por cá foi atribuído o prémio de pior disco do ano a “Com as Minhas Tamanquinhas” por certos críticos representativos da nossa mais alta “intelligentsia” musical).
Já seria suficiente para imortalizar Carlos do Carmo o permanente exercício de homenagem à arte do canto, que é, desde logo, um superior tributo à poesia e aos poetas, e que se ilustraria com dezenas e dezenas de exemplos. Assim de repente, recorde-se “Estrela da Tarde”, “Gaivota”, “Uma Flor de Verde Pinho” “Duas Lágrimas de Orvalho” e “No Teu Poema” (uma pérola, mais uma de José Luís Tinoco, que é, talvez, a mais bonita e completa canção feita na nossa terra – isto para o escriba, naturalmente). Sucede que acresceu a isso o facto de se não tratar só da forma, do respeito intocável pelo que se canta – o que se canta, os poemas e os poetas escolhidos constituem outro crédito a favor de Carlos do Carmo, aqui com caminho antes percorrido por Amália, é justo dizer. É uma evidência?. Pois é.
Mas nem sempre foi assim. Quando Amália começou a cantar Luís de Camões, Fernando Pessoa, José Régio, David Mourão Ferreira e outros –e Carlos do Carmo no seu caminho com Manuel Alegre, Ary dos Santos, Alexandre O’Neil e por aí adiante-, não faltaram intelectuais a criticar ferozmente a “apropriação de uma poesia maior por uma música menor”. Faltava ainda um bom par de anos para o 25 de Abril. E as cíticas vinham do lado “progressista”; entre as vozes mais azedas, a do grande José Gomes Ferreira. O seu texto “Casas de sofrer” é bem sintomático; o que diz nos diários completa o ramalhete. (Nada de ressentimentos Mestre, isto até já prescreveu. E qualquer um poder errar, até os génios!).
O preconceito contra o fado, mais originário da esquerda que da direita, recorde-se, criou a ocasião para Carlos do Carmo ter um papel único e insubstituível num momento que poderia ter sido desastroso. Sob a acusação de proximidade demasiada com o regime anterior –facto de que o fado não tem qualquer responsabilidade- criou-se terreno fértil para reacções mais acaloradas contra os “reaccionários da fadistice” logo após o 25 de Abril. A “malta” queria “canções/mensagem”, letras directas, “nada de queixumes”. (Nem José Afonso escapou ao julgamento de emergentes e súbitos radicais que o apelidaram de “Amália do PCP”. Logo Zeca que nunca foi do PCP. E está-se a ver o conceito em que era tida Amália! Este filme não era novo – com o triunfo de Fidel, a grande música que só Cuba poderia ter criado, havia sido postergada em nome da “nueva trova cubana”. A revolução não ia com canções de “amor e embalação”.
Só quarenta anos depois, e por mão do americano Ry Cooder, foi possível recuperar muitos dos enormes músicos –dos ainda vivos- e daquela grande música –quase esquecida- que sofrera 40 anos de esquecimento e exílio dentro da sua própria ilha. Esta ressurreição traduziu-se no fenómeno Buena Vista Social Clube que o mundo aplaudiu e agradeceu. Em Portugal surgiram esboços, tentativas, indicadores de ameaça similar em relação ao fado. O prestígio de vários artistas maiores, porém, foi decisivo para evitar semelhante desgraça. O nome de frente dessa linha é o de Carlos do Carmo. Ligado ao PCP desde muito cedo, não seria fácil chamar “fascista” ao cantor e “reaccionária” à sua música. Não seria fácil, por muito barbudos que se apresentassem os do contra, e apresentavam, e com muito atrevimento próprio daquela altaneira vocação de comando de que não conseguem escapar os mais ousados a tentar mostrar que são mais radicais que o parceiro do lado, em nome de um vanguardismo sem presente nem futuro que só uma certa rapaziada aventureira e ignorante podia prosseguir. Não seria fácil travar a força de quem os tinha visto crescer e há muito lutava na música, como no resto, por condições de liberdade para todos e todos os tipos de canto. Foi-lhes oposto um passado coerente, que os contestatários nunca sonharam ter mas que não se atreviam a beliscar. E juntava-se-lhe um genuíno querer fazer, que garantia, naquele presente, um futuro a construir logo ali. Não era fácil – poucos se atreviam a pôr em causa esta força.
Na coragem posta nesse combate é bom lembrar, com Carlos do Carmo, também Ary dos Santos, Fernando Tordo, Paulo de Carvalho e grandes senhores de outras músicas que gravaram fados “de Lisboa” e se puseram à frente de alguns espontâneos de judiciosos e precoces pronunciamentos – os senhores José Afonso e José Mário Branco, à cabeça. À dignidade com que Carlos do Carlos do Carmo encabeçou esta barricada correspondeu a coragem e elevação que manteve quando a coisa virou para o lado oposto e os tiros passaram a vir da revanche pos revolucionária. E conheceu miseráveis críticas a partir de dentro do fado. Um fadista comunista? Chamaram-lhe nomes feios! Gente feia, desta vez sem barba. A televisão passou a esquecer-se de Carlos do Carmo. Já não havia lugar para um Festival da Canção com um só cantor como sucedera em 1976 porque esse cantor, Calos do Carmo, não existia para a televisão. (Olhando agora para trás, para esse Festival em que só Carlos do Carmo cantou, quanta qualidade Meu Deus! Estrela da Tarde, Uma Flor de Verde Pinho, Novo Fado Alegre, No Teu Poema, tudo no mesmo festival, como é possível?).
Acontece porém, que aí, no tempo da “ressaca”, foi a pura arte que se impôs. Foi, apenas, uma questão de classe, de pura classe, de pura categoria. Já não se tratava de discutir o papel do fado no antes ou depois de…Em 1977, em plena fase de esquecimento para uns quantos, Carlos do Carmo publica Um Homem na Cidade. E era impossível ignorar, por muito que se quisesse – e não faltou quem quis. Daqui para a frente, nunca mais o fado seria a mesma coisa. E aqui entra outro dos créditos a favor de Carlos do Carmo. Habituados às tradicionais gavetas em que encaixava o fado, perceberam, mesmo os mais renitentes, que havia mais mundo. O fado tinha mais para mostrar a partir de agora. Havia ali coisas que nunca se tinham escutado no fado. À cabeça o fado que dá nome ao disco –Um Homem na cidade.
Da autoria de José Luís Tinoco – arquitecto de profissão, músico por vocação, jazzman por devoção-, do que ali se tratava era de uma lindíssima balada com uma progressão de acordes muito familiar aos standards do jazz mas nada “em casa” quando no fado. Cantada por Carlos do Carmo era um fado. Mas quando anos mais tarde Paula Oliveira foi gravá-la aos Estados Unidos com um trio de jazz nativo, a balada soou ao que sempre foi – uma grande balada de jazz. Fado do Campo Grande, magnífica composição de António Vitorino de Almeida, tem muito menos a ver com as tradicionais variações do fado e muito mais com fórmulas caras à música erudita. Cantado por Carlos do Carmo soa a fado. O abanão provocado por este disco rompeu com grelhas e nomenclaturas e, na falta de outra expressão, chamou-se “fado canção” a algumas destas jóias fora do catálogo, designativo roubado ao que Chico Buarque fizera com o chamado “samba canção”. Concluiu-se mais tarde que, lá como cá, a expressão era um tanto apressada. Afinal ambos haviam rompido tabus formais, “internos” e cristalizados, sem nunca terem deixado de prestar um altíssimo tributo à tradição, de que ambos são fiéis e geniais continuadores.
É na tradição mais profunda da arte que amam –fado e samba- que ambos inscrevem os passos voltados para a sua evolução, para o seu devir. Do que se trata é, desde logo, de abertura. De trazer mais mundo para a tradição, de abanar as águas, traduzindo na música o que Chico sintetizou magicamente, dizendo “talvez não seja a vida um facto consumado”. Esta abertura do fado a outras músicas, a outros músicos, a outros reportórios bem mais amplos, a gente de outras paragens, vem paralelamente acompanhada de uma exploração de novas formas de recurso a novos instrumentos e diferentes instrumentações, em que Carlos do Carmo inova e arrisca mais do que alguém houvera feito. O contrabaixo como presença assídua, em substituição da linha de baixo feita na viola -agora mais livre para as funções harmónicas- (o incrível desafio de cantar fado com acompanhamento exclusivo do contrabaixo de Carlos Bica, num momento inesquecível no Casino do Estoril), a introdução do piano, a experiência com orquestra sinfónica, em tudo isto Carlos do Carmo abriu caminho. Não é de estranhar a sua conhecida paixão por Frank Sinatra e o seu consabido amor pelo jazz.
Também o grande José Afonso dizia ultimamente que não ouvia música; só abria excepção para o jazz. Carlos do Carmo, porém, teve ocasião de gravar um magnifico trabalho com o fabuloso e malogrado Bernardo Sasseti. Voz e piano -um amor de disco; e de gravar com a Count Basie Orquestra um memorável espectáculo com temas jazzy do reportório de Sinatra. Uma coisa de 2010 que se sabia, há muito, estar condenada a realizar-se e a dar certo. Carlos do Carmo mudou o fado por dentro, deu-lhe ferramentas novas mas sem lhe mudar a alma. E abriu o fado a um mundo que lhe passava ao lado. Nesse sentido, Carlos do Carmo deu mais mundo ao fado. E este é mais um crédito a seu favor.
Este, porém, tem uma importância absolutamente única e que mais ninguém terá igualado. Depois de Carlos do Carmo, dito de outro modo, depois de Um Homem na Cidade, surgiram dezenas e dezenas de geniais cantores e cantoras, um incrível escol de instrumentistas de elevada cultura musical de rara técnica, e o fado deu um enorme salto em frente. Dizem os entendidos -e de fora parece perceber-se isso muito bem- que nunca o fado esteve tão pujante, com tantos e tão bons servidores. E a mão de Carlos do Carmo, neste particular, é obviamente marcante.
O respeito internacional que continuou a consolidar para esta nossa música era uma consequência inevitável. O reconhecimento do Fado como Património Cultural Imaterial da Humanidade em 2001 tem muito de Carlos do Carmo. O Grammy que lhe foi atribuído é, somente, a confirmação de um talento e de uma dedicação desse talento, por toda uma vida, à sua arte, a arte da sua terra, da nossa terra. Um outro crédito, enorme crédito a favor de Carlos do Carmo.
Seja-me permitida uma nota pessoal. Nunca fui grande adepto do fado …até um dia. Sucede que numa certa ocasião, ali pelos dezassete, anos ouvi “Um Homem na Cidade”. E fui ouvir de novo. Eu conhecia aquilo e nunca tinha ouvido. Tornei a ouvir. Pus-me a tirar os acordes. Aquilo era muito cá de casa. Afinal conhecia bem aquilo que estava a ouvir pela primeira vez. Depois fui ouvir “Ao vivo no Olympia”. Lá estava “Um Homem na Cidade” de novo. Estava lá o Zeca, o Fausto, o Sérgio, o Freire, o Jaqques Brel (Une Valse a Mill Temps, numa versão de cortar a respiração). Não era possível deixar de ouvir mais e mais. Ao tornar-me profundo admirador de Carlos do Carmo tornei-me apaixonado por essa grande música que é o fado. Mas, para mim, Carlos do Carmo veio primeiro que o fado. Entrei no fado pela porta que Carlos que Carmo me abriu. E tinha Abril, ainda por cima. E “As portas que Abril abriu…” O fado é, desde então, uma música que eu amo. Nunca poderei pagar a Carlos do Carmo por isso. Mas também julgo que não saberia fazer melhor homenagem a Carlos do Carmo do que dizer-lhe isto. Este crédito devo-lho eu. Os outros devemos-lhe todos. Obrigado Carlos do Carmo.
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