Gisela Maria Matos: “A adultez é um lugar um bocado chato e é mais difícil encontrar o riso”

A vimaranense Gisela Maria Matos esteve à conversa com a Mais Guimarães e falou do presente, do passado e do futuro.

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Licenciou-se na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo (ESMAE) em Teatro e Interpretação. Não sabe o que seria se não fosse atriz, porque o teatro esteve sempre presente na sua vida.

A vimaranense Gisela Maria Matos esteve à conversa com a Mais Guimarães e falou do presente, do passado e do futuro. Atualmente, é Doutora Palhaça na Operação Nariz Vermelho e, entre outras coisas, faz teatro de improviso com os Ervilha no Topo do Bolo.

Pode ainda ver a entrevista completa no youtube.

© Cláudia Crespo / Mais Guimarães

Acho que este é um espaço especial para ti…

Sim, foi aqui que eu comecei a fazer teatro. Já tinha tido algumas experiências antes, mas assim mais a sério foi aqui. É bom voltar a casa.

Como é que surgiu este gosto pelo teatro?

Não sei muito bem quando é que surgiu, mas a primeira experiência que tive tinha 13 anos. Eu disse que queria fazer teatro – não sei muito bem de onde é que essa vontade surgiu -, mas os meus pais foram muito compreensivos e procuraram sítios onde eu podia explorar e fazer teatro. Encontraram vários sítios e comecei a fazer teatro e encontrei este sítio em Guimarães. Foi assim o sítio onde eu comecei a fazer mais a sério, durante a adolescência, antes de entrar na faculdade.

E depois foste para a ESMAE… Fala-nos um bocadinho desse teu percurso.

Foi muito bom, porque eu estava finalmente a concretizar aquilo que queria fazer, que era estudar teatro e era tudo novo. Tinha 19 anos, não entrei à primeira na ESMAE porque falhei na prova de canto e, então, entrar foi mesmo um desejo muito grande, era uma vontade muito grande. Já tinha estado um ano à espera para voltar a fazer as provas e era uma coisa que queria muito fazer. Isso, aliado à juventude e montes de ideias e projetos para pôr em prática e depois também conhecer pessoas novas, estar a viver no Porto – que era uma cidade muito maior do que Guimarães -… Essa mudança provocou em mim acho que esse estímulo de estar lá e, de repente, tudo é uma bola de neve e as ideias começam a surgir e as coisas começam a aparecer.

© Cláudia Crespo / Mais Guimarães

Curso de teatro e interpretação, certo? Quais são as provas?

As provas são uma prova de interpretação – tens que decorar e encenar um texto -, uma prova de improviso, uma prova de cultura geral – que é escrita -, uma entrevista, uma prova de movimento, uma prova de canto, e acho que é só.

E já é muita coisa… [risos]

Já é muita coisa para preparar, sim. Todos os anos há alunos a prepararem-se para isso, concorre muita gente e são poucas vagas. Mas vale a pena.

Depois foste para o Reino Unido…

Fiz Erasmus numa universidade em Falmouth, no sul de Inglaterra, e lá estudei theatre and solo performance, que eram duas coisas que o curso promovia nesse intercâmbio e criei um espectáculo a solo, a Miss Pink, que depois pude trazê-lo e apresentá-lo em Portugal. Por isso, esse período em Inglaterra também foi muito positivo no meu percurso, porque pude concretizar ideias que eu tinha já durante o curso na ESMAE, mas, enfim, por culpa de ser muito intenso e muito ocupado… Em Inglaterra tive outro tempo para pensar melhor nas coisas que eu queria fazer e daí surgiu a Miss Pink.

© Cláudia Crespo / Mais Guimarães

Quais são as principais diferenças entre estudar teatro em Portugal e, neste caso, no Reino Unido?

No caso, eu estava num contexto muito específico, porque a escola tinha esse protocolo. Mas eu sentia que era muito diferente em vários níveis, por exemplo em relação às infraestruturas da escola. No Reino Unido, as salas de ensaio estavam muito melhor preparadas, tinham um sistema de som, de luz, gravadores, vídeo projetores… Na ESMAE não existia nada disso e, aliás, era muito difícil conseguir uma sala para ensaiar porque há muitos alunos e poucas salas e é sempre um caos. Era tudo muito mais organizado e muito megalómano, havia um ginásio no campus, um supermercado, uma discoteca, uma biblioteca de três andares… Espetacular, mas, de facto, sentia que os meus colegas em Portugal eram muito mais empenhados, muito mais profissionais. Se calhar tinham um gosto muito grande por aquilo e queriam muito fazê-lo. Acho que nós fazíamos mais com menos do que a experiência que eu tive depois. Isso é que me levou, acho, a criar a Miss Pink. De repente, tinha tantas infraestruturas que em Portugal não tinha e essa oportunidade fez-me fazer alguma coisa, porque sentia que estava a desperdiçar recursos.

Quando é que entra o clown na tua vida?

Foi assim uma surpresa, mas, ao mesmo tempo, parece que já estava aqui desde sempre. Eu é que não sabia… Essas coisas com que, de repente, me cruzei durante o curso, com uma disciplina de clown… Lembro-me de, nessa altura, pensar: se calhar era o que eu já estava a fazer, só que eu não sabia que isto era clown, que era isto que eu queria explorar e fazer. Havia sempre uma parte do teatro que não me interessava muito, não sabia muito bem porquê. Acho que foi durante o curso que eu percebi “isto, se calhar, era o que eu queria fazer”. Depois comecei a fazer mais workshops e investigar mais sobre o que era o clown e o que é que é todo este universo. Ainda agora não sei, estou a investigar ainda, acho que é inesgotável. Mas a Miss Pink já era muito clownesca também. Foi feita nesse contexto do curso, mas é uma performance que tem esse tom clownesco.

© Cláudia Crespo / Mais Guimarães

As pessoas associam muitas vezes o palhaço ao circo. Mas é muito mais do que isso…

Sim! O palhaço tem várias ramificações. Atualmente está presente em várias coisas. Aliás, é possível ver espetáculos que estão cheios de diferentes linguagens e está tudo já misturado: teatro, clown, dança, música… Não é bem possível definir uma coisa assim dentro de um quadrado. Profissionalmente, é possível fazer clown no circo, no teatro, num hospital, por exemplo, em vários sítios…

Falando no hospital, és Doutora Palhaça. Como é que é essa experiência?

É bom. Isto foi tudo acontecendo, eu não sei muito bem como é que aconteceu, as coisas foram só acontecendo. Estava a terminar o curso e abriram audições para a Operação Nariz Vermelho, que a associação para a qual trabalho desde 2014. Abriram audições para trabalhar como palhaça no hospital e como esta questão do clown já tinha sido por mim experimentada e já tinha percebido que, se calhar, era mais ou menos por aqui que eu queria ir, vi nisso uma oportunidade de trabalhar profissionalmente como palhaça. Porque, de facto, em Portugal, há poucas companhias que o fazem e na Operação Nariz Vermelho todos os palhaços são profissionais e isso era uma possibilidade de trabalho para mim, porque eu ia terminar o curso e ficar sem trabalho. Também tinha várias provas e várias fases. Concorri e fui ficando nas fases e fui entrando. De repente, já passaram oito anos e isso aconteceu. Mas é todo um novo mundo. De repente abri um novo capítulo, porque o meu percurso tinha sido todo no teatro e o hospital é outro sítio e foi preciso estudar muito – ainda está a ser – para trabalhar no hospital.

© Cláudia Crespo / Mais Guimarães

Acredito que a nível emocional também não seja o mesmo que fazer teatro em cima de um palco.

Sim e não. Não sei. Porque o teatro, às vezes, também emocionalmente custa muito, é muito difícil. Tem várias diferenças e acho que a principal é que no hospital o público não sabe que nós vamos estar lá e ele não pediu para nós estarmos lá. E nós não podemos nunca impor o trabalho que vamos fazer. No teatro é exatamente o contrário, o público saiu de casa, comprou um bilhete, organizou a sua vida toda para aquele momento… Logo essa premissa é muito diferente. O contacto com as pessoas também é outro. No hospital trabalhamos muito mais de um para um. No caso do teatro, muitas vezes, existe uma plateia e é para um grupo de pessoas, normalmente. As diferenças têm mais a ver com essa relação e claro que estamos a lidar com uma realidade que no teatro não existe, é sempre tudo muito falso, muito seguro, as pessoas estão sentadas, nós estamos a fazer o nosso trabalho… Mas as duas mexem emocionalmente em pontos diferentes. Claro que o hospital é sempre uma frente de batalha em que é preciso estar muito centrado e muito concentrado, mas no teatro também muitas vezes.

Li no site da Operação Nariz Vermelho que “o Doutor Palhaço nunca força a criança a rir, nem insiste em impor a sua presença”…

Quando as pessoas vão ao teatro ver palhaços estão, à partida, à espera de se rir. Já sabem que isso vai acontecer. Isso também acontece no hospital quando elas nos veem e associam a nossa imagem a essa questão do riso. Muitas vezes, o que nós fazemos é, por momentos, retirá-las daquele lugar. Isso já é uma grande vitória, porque o hospital é assim um lugar muito horroroso muitas vezes e se nós conseguirmos, pelo menos, por microssegundos, retirá-las daquele sítio e abrir-lhes o imaginário para outro sítio, já está grande parte do trabalho feito. Acho mais exigente, nesse sentido, riso no teatro, porque claro, se eu paguei um bilhete para ver um espetáculo de palhaços, quero rir-me.

Rir pode mesmo ser o melhor remédio?

Acho que pode. Acho que no riso há uma oportunidade de relaxarmos, sobretudo quando estamos no hospital em grande tensão, em momentos muito próximos da vida e da morte – é sempre assim um lugar em que esses dois pontos se juntam -. Se nós conseguirmos rir nesse momento, há pelo menos um bocadinho que relaxou. O problema não desapareceu, nós continuamos no hospital e isso, pelo menos nesse momento, é inevitável, mas há um relaxamento no riso que eu acho que é bastante frutífero quando estamos nesse sítio. Acho que esse é o melhor remédio, sim.

© Cláudia Crespo / Mais Guimarães

No teu dia a dia, também és uma pessoa de riso fácil?

Acho que sim, acho que sou. Não sou do tipo de pessoa que está sempre a dizer piadas, ou que é muito popular. Tenho amigos que são os engraçadinhos do grupo, eu não sou esse tipo de pessoa. Mas eu tenho o riso fácil e tento ver as coisas com humor e o humor é uma coisa que me interessa muito no meu dia a dia, para ser um remédio também. O dia a dia não é assim fácil.

E a adultez vem tirar um bocadinho essa magia do rir?

Não sei… Às vezes sim… Claro, se compararmos com a infância, as crianças têm uma curiosidade sobre o mundo que as leva a deixar-se surpreender com as coisas que acontecem que leva ao riso muitas vezes. Os adultos já não têm essa surpresa, já sabem como é que vai ser, o que é que vai acontecer, são menos vezes surpreendidos e eu acho que, por isso, riem-se menos. Por outro lado, os adultos também já passaram por tantas coisas que relativizam os problemas a um ponto de poderem deixar-se rir deles… Não sei se a adultez, mas a velhice está mais nesse lugar de “já vi tudo, já passei por tudo, que agora posso-me rir disto porque é uma parvoíce, vamos todos morrer e pronto”. Se calhar a velhice está mais nesse lugar infantil do riso. A adultez é assim um lugar um bocado chato porque tem muitas responsabilidades e é mais difícil encontrar o riso na adultez.

Estás também com os Ervilha no Topo do Bolo, teatro de improviso. Como é que se faz e de que forma se prepara um espetáculo de improviso?

Com muito ensaio, curiosamente. Construímos um espetáculo que tem um conjunto de jogos de improviso que têm regras e o que nós fazemos é treinar jogar esses jogos, treinar criar histórias utilizando esses jogos, e depois, no espetáculo, fazemos igual. Muitas vezes não corre tão bem como nos ensaios. Mas esse caráter improvisado ou esse caráter imprevisível traz uma camada ao teatro que me interessa. Essa imprevisibilidade dos espetáculos de teatro de improviso interessa-me. No teatro convencional nós ensaiamos, ensaiamos, ensaiamos – claro que existe sempre uma percentagem de improviso, porque o público não esteve nos ensaios e isso é diferente e todas as pessoas são diferentes então todos os dias o espetáculo é diferente -, mas existe uma grande dose de imprevisibilidade naquilo que vai acontecer. No caso do teatro de improviso nós não sabemos, de facto, que histórias é que vamos contar, de que assuntos é que vamos falar, que temas é que vão surgir, porque eles são dados pela plateia. A participação da plateia é muito muito muito grande no caso do teatro de improviso. Também é outra coisa que me interessa muito, devolver ao público essa possibilidade de participar nos espetáculos de uma forma ativa.

© Cláudia Crespo / Mais Guimarães

Gostas desse contacto com o público?

Gosto muito, porque eu posso preparar o meu trabalho, posso ensaiá-lo, prepará-lo… Eu, enquanto atriz, posso fazer a minha preparação e devo – a todos os níveis tenho que estar pronta -, mas só desse contacto com o público é que vamos poder construir uma coisa em conjunto. E acredito muito nessa relação, por isso é que gosto tanto de teatro e acho que é por isso que o faço. Essa relação com as pessoas, essa completa dependência do público interessa-me muito. Se não fosse isso eu estaria em casa a fazer teatro sozinha, só para mim, e isso não interessa.

Se não fosses atriz, o que é que gostavas de ser?

Não sei. [risos] Às vezes eu brinco a dizer que seria florista, mas é só porque eu não percebo nada de flores e podia ser uma maneira de eu aprender alguma coisa, mas é uma piada, na verdade. Comecei a fazer teatro com 13 anos e não parei mais até hoje. Não sei como é que isto aconteceu, mas é verdade, aconteceu. No início não foi assim muito consciente, foi “vou continuar a fazer isto, agora vou continuar a fazer isto”. Depois tinha de ir para a universidade e quis continuar a fazer isto e saí da universidade e continuei.

Que ferramentas é que o teatro e o improviso trazem para o dia a dia? Se é que trazem alguma coisa…

A mim traz. Decidi fazer disto vida porque achei que me ia trazer muitas coisas interessantes. Esse lugar de não saber, no caso do improviso, que é também um lugar muito comum ao clown, que é essa vulnerabilidade em que os atores se colocam, de não saber o que é que vai acontecer, acho que é uma grande aprendizagem para a vida. Essa possibilidade de estarmos num lugar sem saber e permitirmo-nos a isso. É uma coisa que a adultez tira muito, porque as pessoas cada vez mais, quando vão amadurecendo, deixam de querer colocar-se nesse lugar vulnerável e eu acho que ele é muito importante porque também nos deixa alerta e disponíveis para outras coisas que possam acontecer que nós nem planeamos nem pensamos que poderiam acontecer… deixarmo-nos surpreender com isso. Isso eu acho que é a maior aprendizagem para a vida que o teatro pode trazer.

© Cláudia Crespo / Mais Guimarães

O teatro pode servir também para passar mensagens?

Acho que sim. As pessoas, quando vão ao teatro, têm todas um objetivo diferente. Mas cada uma pode retirar a sua interpretação e a sua experiência daquilo, consoante a sua própria experiência. Eu vou ver um espectáculo e vejo umas coisas e, se calhar, se tu fores vais ver outras. Acredito nessa interpretação individual dos espetáculos e, às vezes, nem sequer exige uma interpretação por aí além. Só uma sensação, uma emoção que te traduz aquela cena já poderá ser suficiente. Como no caso do hospital. Só ver dois palhaços no meio de um contexto de pessoas com batas, máscaras e seringas pode ser uma coisa que te retira desse lugar e eu acho que o teatro, muitas vezes, também pode ser só isso, as pessoas irem e depararem-se com emoções que estão a sentir nesse momento, porque o espetáculo lhes toca. Nem tanto mensagens, mas, se calhar, sim, emoções.

O que é que podemos esperar de ti no futuro?

Não sei, a vida é um improviso [risos]. Não sei, neste momento deixei o mestrado em standby porque queria pensar muito bem sobre um projeto que gostaria de pôr em prática. O próximo ano reserva-me alguns projetos, vamos esperar para ver como é que eles correm. Mas, de certeza, com o clown e com os Ervilho no Topo do bolo.

E, certamente, a fazer rir e sorrir…

Espero eu. Isso é sempre uma incógnita.

Veja o vídeo da entrevista:

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