O relato de um ano de sucessivos confinamentos

Entrevista ao treinador de futebol Luiz Felipe.

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“O Vasco ganhou 3 – 0 ao Flamengo naquela noite. Uma criança de seis anos, duzentas mil pessoas, grandes ícones do futebol.” Luíz Felipe nasceu no Brasil e foi pela mão do padrinho que entrou no Maracanã pela primeira vez. Foi assim que o futebol entrou na sua vida e nunca mais saiu.

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Em 2020 vivia em Wuhan, o epicentro da pandemia. Uma cidade onde “ou é inverno ou é verão, é um calor muito forte ou muito frio”. Depois de treinos pelo Zoom e de um campeonato diferente, num lugar fechado, recorda a história que viveu, em conversa com a Mais Guimarães.

Como é que foi estar no epicentro da pandemia quando ainda era quase desconhecido no resto do mundo?

O que se passou foi exatamente isso: desconhecido. Nós estávamos em estágio Kunming. Ouviu-se falar alguma coisa sobre um vírus, mas não se sabia muito.

Cheguei no dia 22 de janeiro, se não me engano, às 20h30. Já notamos algo estranho, porque, em Kunming, quando fomos para o aeroporto, e quando as pessoas nos viram ir em direção ao check in na zona de Wuhan, ouvia-se um burburinho.

Tinha dois colegas que iam viajar no dia seguinte, já tinham tudo pronto. Estava em casa de manhã e sou surpreendido com uma chamada dos meus colegas a dizer que a cidade estava fechada, já não conseguiam viajar. Nós chegamos 14 horas antes do lockdown, de fecharem completamente a cidade. Obviamente, aí, ficamos presos, tivemos que ficar dentro dos nossos apartamentos. Ainda fui a um supermercado muito pequenino que tinha perto da nossa casa e já eram duas filas enormes, que nunca acontecia. Vinha até cá fora. Entrei logo na fila e nem sequer comprei o que eu precisava. Fui comprando aquilo que estava à mão, andei sempre na fila e fui comprando aquilo que me chegava.

“Podemos proteger-nos mais uns aos outros.”

LuiZ Felipe

Eles, lá, não reúnem para decidir o que vão fazer, eles tomam a decisão. Os cinco dias seguintes foram bastante complicados. O tal supermercado perto de minha casa ficou sempre fechado e eu, com medo, também não conhecia o vírus, equipei-me todo, estava muito frio, fui todo tapado e tive que andar quatro quilómetros a pé até encontrar outro supermercado.

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O regresso a Portugal era algo que certamente esperavam ansiosamente…

O regresso a Portugal foi uma história interessante. Um grupo de portugueses começou a criar um grupo e a entrar em contacto com a Embaixada. Foi um drama: entrar em contacto, é preciso ir buscar este e aquele, não havia carros, não conseguias pedir um táxi. E eu disse “vamos ter todos à Embaixada francesa”. Ficava a oito quilómetros, até conseguiríamos andá-los a pé, apesar de ser muito, mas havia pessoas de muito longe. Falamos com os chineses que trabalhavam connosco e diziam que era impossível, que não havia carros. Houve, depois, dois indivíduos da Embaixada que foram fabulosos. Alugaram duas carrinhas de nove lugares e vieram de Pequim a Wuhan e foram buscar toda a gente. 

O dia da viagem também foi bastante conturbado. Tivemos que ficar no fundo de um hotel, uma loja que nos foi cedida, muito fria. De lá, fomos para a Embaixada francesa e entramos nos autocarros que nos levaram diretamente para o aeroporto. Ninguém espirrava, as pessoas tinham medo. Se tivéssemos temperatura ou alguma coisa já não viajávamos. O avião também atrasou e houve uma ansiedade bastante grande, mas conseguimos embarcar.

A nível psicológico sente que teve algum impacto?

Nós até estávamos bastante tranquilos. Nós só nos damos bem conta da situação quando chegamos a Portugal. Quando estás a viver a viver a situação, não tens bem noção da gravidade.

O nosso grande medo nem era o de apanhar o vírus. O nosso medo era ter de ficar num hospital daqueles, onde estava tudo um caos. No estrangeiro, sem falar a língua, ia ser muito complicado.

Quando chega a Lisboa fica no hospital voluntariamente...

Isso foi outra discussão. Eu disse “cada um faz o que quiser, eu vou para o hospital. Vai-se criar um estigma na minha família quando andarem na rua”. E por uma questão cívica, também. Depois acabamos por conversar todos, fomo-nos conhecendo, acabamos por chegar a um consenso e fizemos todos os 14 dias de quarentena no hospital.

Como fomos voluntários, tentaram dar-nos as melhores condições possíveis, mas, como era óbvio, Portugal não estava pronto para receber ninguém. Houve um esforço para que estivéssemos minimamente bem, dentro do possível.

Foi chato. Estive nove dias preso em Wuhan no apartamento, 14 dias preso no hospital, cheguei a Guimarães e vários meses em casa, volto para Wuhan e tive que estar a treinar num lugar que só saía ao sábado à noite, depois fui para um lugar para competição e estive mais 40 dias fechado. Esses sucessivos confinamentos é que nos deixam um bocado mais afetados, mas tem que ser.

“O treinador, na China, é visto como um professor.”

Luiz Felipe

Como é que surge o convite para ir para a China em 2016?

Tinha acabado de chegar do Kuwait e fui abordado por um empresário que precisava de um coordenador para ir trabalhar no Tianjin Teda. Fui a uma entrevista no Porto e fiquei como coordenador do Tianjin Teda. Eles não tinham academia, não tinham nada, era um trabalho que eu tinha que começar de base, tinha que fazer as equipas, organizar a logística. Para mim não foi problema nenhum, porque trabalhei sete anos no Vitória e já fui coordenador na Arábia Saudita.

Entretanto, os agentes que me levaram para Tianjin viram o meu trabalho, ouviram, interessaram-se, e trouxeram-me para trabalhar para eles. Trabalhei dois anos e meio para eles na federação de Hubei. Depois,acabei por me mudar, porque eles tinham um clube que estava na terceira divisão e trabalhei dois anos nesse clube, que agora acabou. O clube extinguiu-se.

O clube extingue-se porquê?

Os clubes lá ainda funcionam muito assim: têm um dono e esse dono investe lá o dinheiro e, quando ele se aborrece, fecha e acabou. O meu clube foi exatamente isso. A empresa tinha um clube e tinha uma academia em Dalian. Também para reduzir despesas, trouxeram a academia para Hubei e fundiram. É a realidade do futebol chinês.

Há uma grande diferença entre ser treinador em Portugal e fora?

Grande diferença. O treinador na China é visto como um professor e há respeito. No final de um jogo, a equipa adversária vem toda ao teu banco e chega à tua beira: “obrigado, treinador”. O treinador é uma pessoa que ensina, que educa, que tem conhecimentos. Em Portugal, em alguns lados, o treinador estuda a vida toda, mas é sempre ignorante, não sabe nada. Apesar de termos um futebol mais desenvolvido, ainda temos uma maneira um bocado medieval de olhar para o treinador. 

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“Estou há 10 anos fora e já começam a ser muitos. Começas a perder algumas referências, tanto familiares como a nível social.”

Luiz Felipe

Acredita que é preciso mudar mentalidades em Portugal?

É muito difícil, somos latinos, está-nos no sangue. E as coisas começam de cima. Os clubes que são mais beneficiados são aqueles que mais fazem barulho, que mais pressionam, que mais incitam a violência. Tive um jogador que vinha do Tianjin, duma lesão, fez um jogo e foi expulso. O castigo foram oito jogos. “Mas ele não matou ninguém. Oito jogos em Portugal tens de matar alguém.” Ele dirigiu palavras impróprias ao árbitro. Isso em Portugal é desde que começa o dia até que façam 24 horas. Lá pune-se.

Há planos para o futuro? Passam pelo futebol e por Portugal?

Sou treinador de futebol e tenho 55 anos, não sou muito novo, mas também não muito velho. Ainda espero treinar, pelo menos, dez a quinze anos. Neste momento, penso mais em Portugal. Estou há 10 anos fora e já começam a ser muitos. Começas a perder algumas referências, tanto familiares como a nível social. Já começo a ver Portugal como uma possibilidade para trabalhar.

A pandemia trouxe algum ensinamento à sociedade?

Nós temos todos memórias muito curtas. Isto quando abrir, vai ser como aquele cão que está preso de segunda a sábado e no domingo abres o portão. Vamos todos passar por uma euforia muito grande. Essa euforia poderá levar-nos a um esquecimento. Mas acho que isso terá que ser um trabalho das escolas, do Governo, das empresas…

Não sou médico, sou treinador de futebol. Todo o mundo entende da minha profissão, só eu é que não entendo. Temos que nos reeducar. Se calhar, se tivermos um bocado de civismo, quando eu ficar constipado, vou sair de máscara, e as pessoas vão dizer que já não há covid. Se calhar podemos proteger-nos mais uns aos outros. Que nos possamos precaver para o futuro, que sejamos mais solidários, mais organizados, e que tenhamos um pouco mais de civismo coletivo.

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