Precisamos de histórias com final feliz

Por Carlos Guimarães.

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por Carlos Guimarães
Médico urologistaDizem que sou bom contador de histórias, eu duvido, duvido sempre da minha bestialidade, mas hoje vou contar uma história.

A história que tenho para vos contar é uma história gravada na vida real e ficcionada apenas nos nomes e microscópicas conjeturas de quem a escreve. Uma história de palpitações amargas, de boca seca, de corda no pescoço, de força, de esperança, de fé. Uma história de um comboio a alta velocidade que nos atinge mas não nos mata.

Aos vinte anos de idade somos uma força da natureza, somos alimentados por sonhos e pela energia de viver intensamente o presente, consideramo-nos fortes, livres de perigo e não vislumbramos obstáculos. A vida por vezes mostra o lado da moeda que está virado para baixo, a face não visível, indesejável e que não queremos ver. Mas ela existe. Há envelopes que não queremos abrir, mas sabemos que não os podemos manter fechados, há uma realidade que queremos ver negada, mas a realidade nunca se nega.

Alberto tinha vinte anos quando o conheci pela primeira vez (que bom seria não o ter conhecido naquele dia). Trazia consigo uma estranha serenidade, a angustia de quem vive num dilema e uma dúvida que queria ver esclarecida. Trazia consigo o maléfico. Trazia algo duro que palpava num dos testículos, uma dureza quase pétrea e irregular como as próprias pedras. Não há muitas formas para dizer a verdade. Foi dura sentença pronunciada e mil vezes mais agreste de ser ouvida. Ainda hoje consigo ver a sua expressão com um falso sorriso de quem já estava à espera. Não havia plano B, o testículo estava perdido, o futuro reticente. A pressa que se impunha cumpriu-se no ato tecnicamente simples e no congelamento profilático do sémen. Nada lhe roubou o otimismo, nada lhe sorveu a sua preciosa força interior. Estava escrito que Aberto venceria. A etapa seguinte chegou menos abrupta, expectável e muito dura, roubou-lhe todo o cabelo e alguma cor, não mais que isso, apenas isso.

A vida prosseguiu, para mim e para ele, com a normalidade das vidas dos seres humanos comuns. O tempo que nunca lhe roubou a confiança devolveu-lhe o cabelo com a força do passado. Volvidos quatro anos sem que a doença mostrasse os dentes, numa manhã que nunca deveria ter existido, Alberto procurou-me com a sua admirável serenidade percepcionando uma nova petrificação no testículo restante. Mau de mais para ser verdade e suficientemente forte para ser real. As palavras que eu não queria dizer foram ditas por ele a mim, coube-me apenas acelerar os passos para remover a última gónada. Foram muitos palavrões que proferi para me aliviarem o espírito carregado, e de repente, até parecia que era ele com a sua quietude que me dava força. Por breves momentos os papéis foram invertidos. Demos início a uma nova via sacra, sem morte nem ressurreição. Detivemo-nos de novo nos venenos que matam células más e algumas boas, ele com a sua força positiva, eu com inoculações de esperança e fé na cura possível. Aconteceu. O tempo seguiu o seu caminho e fomo-nos encontrando por aí, ele feliz na sua vida normal que a suplementação hormonal conferia, a fazer aquilo que gostava, eu na minha vidinha. Ficamos amigos.

Um dia deixei de o ver, mas nunca deixei de o usar como exemplo de força, fé , quietude e superação. Soube que o amor lhe bateu à porta e entrou, não soube mais nada.

Hoje, 16 anos após o choque com o comboio a alta velocidade, encontrei Alberto. Um homem diferente, mais completo, mais firme, mais futuro. De mão dada, passeava o seu filho, um puto de ano e meio gerado no ventre da mãe com o espermatozoide criopreservado nos primórdios do século XXI. A ciência, a mesma ciência que curou o pai, que criou o filho, procura encontrar o caminho que nos liberta destes dias de merda.

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