“UMA PORTUGUESA COM UM JEITINHO BRASILEIRO”
Entrevista a Maria João Costa, autora da nova novela da TVI, que estreia amanhã.

destaque maria joao
De Guimarães ao Rio de Janeiro, do curso de Direito à vida de escritora. Maria João Costa é a autora da nova novela da TVI, “Valor da Vida”, e aborda o mundo do horário nobre da televisão na sua forma mais pura.
Quero que recue um bocadinho até à sua infância, aqui em Guimarães.
Vivi cá até aos 17. A casa do meu avô era no fim da rua Santa Luzia, cá em baixo, que agora é um bar. Não sei como se chama aquele bar, mas é engraçado que agora o meu quarto é uma pista de dança. Não é que tenha deixado de vir cá à cidade, passei foi a vir menos, especialmente nos últimos anos, que estive a viver fora. A Guimarães vinha praticamente no Natal. Vinha muitas vezes a Portugal, mas Lisboa passou a ser a minha casa, porque tinha os meus
amigos e namorado lá, então acabava por fazer muito Rio – Lisboa, e depois vinha cá um fim-de-semana a correr, porque a família continua a viver cá.
Aos 17 foi estudar Direito.
Queria ter ido fazer Cinema, mas os meus pais não deixaram. Eles achavam que não era uma coisa que me desse futuro, é para ver como a vida é uma coisa retorcida. Nunca fiz Cinema, mas vai-se aproximando. É engraçado como
queria ter feito Cinema e ninguém me levou a sério, porque achavam era um disparate. Acabei por escolher Direito, porque com Direito podia ser jornalista, mas em Jornalismo não podia ser advogada. Mas também nunca fiz nada com isso. Na verdade, comecei a trabalhar durante a faculdade como jornalista. Era uma miúda, fazia umas entrevistas. Depois, no último ano fui fazer uma entrevista, porque ia abrir a NTV, e acabei por ficar naquele grupo inicial, mas nunca fui com eles para o ar. Acabei por ir trabalhar para a RTP. Ainda estive lá uns dois anos, e foi na altura em que meti na cabeça que queria ir trabalhar para o Brasil.
Uma cultura que sempre lhe chamou à atenção.
Sim, não sei porquê. Não sei se é de outras vidas, se pela literatura… Mas a primeira vez que cheguei ao Rio até me desiludi bastante. Cheguei num janeiro bastante chuvoso. Um tempo péssimo e fiquei desapontadíssima.
E a família como é que reagiu?
Nessa altura ninguém me levava a sério, mas isso faz parte das famílias. É quando não se tem aquele trabalho fixo das 09h00 às 18h00, sempre direitinho. Mas acho que isso com o tempo passa. Depois, o GNT Portugal estava à procura, como eles diziam, de “uma portuguesa com um jeitinho brasileiro”. Eu apareci e comecei a fazer um programa que se chamava “Braços Abertos”, que era uma coisa entre Portugal e Brasil, um híbrido de informação e entretenimento. Depois passei a fazer a parte deles cá em Portugal. Estive lá quase um ano, assim meio sabático, para fazer contactos e depois voltei. Entretanto, a TV Globo fechou em Portugal e comecei a trabalhar na edição, na D. Quixote. Eu escolhia que livros é que íamos editar, era suposto fazer os best-sellers e fiz bastantes. Comecei meio por acaso e acabei por me divertir bastante. Foi algo que descobri que gostava de fazer, porque acabei por me especializar muito no que era análise de tendências. Portanto, antecipava um bocadinho o que é que ia dar, o que é que o público ia querer ver.
Recorda-se de alguma obra?
Querem saber livros que publiquei? Foram coisas variadíssimas e com sucesso em áreas diferentes. Tanto publiquei um livro do Medina Carreira,que foi um sucesso na altura, como publiquei o livro do António Feio, que foi um mega sucesso. Também cheguei a publicar o Futre. Acho que o meu tempo de edição foi muito importante para este meu tempo de autora. Há muitos livros que não publicamos porque são tão polémicos que se os publicássemos íamos ter um monte de processos em cima. É preciso ter muito cuidado. Por exemplo, no livro sobre a Casa Pia, nós escolhemos mudar os nomes de toda a gente. Assim pudemos contar a história de forma livre, mas com nomes trocados.
Passemos agora para a aventura de escrever novelas, como é que se entra nesse mundo?
Entra-se à maluca mesmo. O mercado é bastante fechado, a começar pela própria produção que é limitada. Quando comecei, a TVI estava a fazer duas novelas e a SIC uma só. Portanto, é um meio fechado. E a ideia de fazer novelas nem foi minha, foi de uma amiga, que trabalhava comigo na edição. Ela é que era a noveleira, porque eu nem via
novelas. E ela disse-me que devíamos fazer uma novela. Achei uma ideia gira, e foi assim que começou. Juntamo-nos na casa de uma amiga, inspiramo-nos e começamos a criar uma história. Olhamos para aquilo e pensamos que não estava mau. Desenvolvemos aquilo mais um pouco e depois fomos mostrar a sinopse à SIC. Acharam engraçado, mas que ainda precisava de trabalho. Como eles já estavam a fazer uma novela e tinham contrato com outra autora, achamos que ia demorar bastante. Então fomos bater à porta da TVI.
Há quantos anos isso foi?
Há sete anos. Eu até digo a brincar que entre pensar em fazer alguma coisa na ficção, até começar a ganhar dinheiro foram quatro anos. Mas até lá gastei bastante. Fiz aquela primeira sinopse assim meio a brincar. Depois, percebi que me faltavam bases de outras coisas. Nunca tinha estudado dramaturgia a fundo. Então, como estava no Brasil, aproveitei para estudar bastante. Tive um professor muito bom, que me ensinou as bases. Não é que haja regras muito específicas para fazer novelas, mas há umas coisas que temos de saber. Mas fiz uma data de cursos de outras coisas, sobretudo séries. Aproveitei bem esse momento, e tive muita formação no Brasil. Para além disso, fiz também uns cursinhos de interpretação, de televisão e cinema. Eu nunca quis ser atriz, mas achava importante perceber o processo de quem está do outro lado a receber os nossos textos. Uma pessoa até aprende a valorizar mais o trabalho dos atores.
Então acabou os estudos e começou a escrever?
Eu ainda hoje estudo. Acho que é um processo contínuo. Temos que voltar atrás, aos Clássicos. Percebemos que independentemente do tempo em que estamos, a matriz das histórias é muito parecida. Nós trabalhamos com conflitos humanos que não começaram hoje, começaram lá atrás e são os mesmos. Ou seja, esses clássicos de “pai que mata o filho”, “mãe que tem ciúme da filha”, são matrizes de histórias que são comuns. Ninguém inventa nada, é tudo reinventado. Quando fiz “Ouro Verde”, a matriz da minha história era de “O Conde de Monte Cristo”, e a única coisa que tinha de semelhante é que tinha um homem que muda de identidade, porque se sentia injustiçado e voltava para se vingar. É uma história que as pessoas reconhecem, sem saber que a reconhecem. Está no inconsciente coletivo, porque nós todos reconhecemos estas histórias e já vários autores, ao longo dos séculos, as foram compilando.
E em relação ao estigma das novelas?
Há algum preconceito. Realmente, há novelas que são muito fracas porque entram num esquema de produção que é muito massificado. Por causa dos custos, uma novela é feita muito a correr. Nós não temos muito tempo para pensar. Mas isso, acabou por criar um estigma em relação à novela. Gosto muito daquela coisa que é “passou uma semana, mas está tudo igual, não aconteceu nada”. No início, nas novelas isso acontecia, porque não havia nem maneira de passar atrás a novela, o que hoje existe, e como a novela é um produto longo, a técnica original obrigava a isso. Só que hoje, isso já não faz sentido. Agora há 20 maneiras diferentes para ver o que está a acontecer na novela. São os resumos na internet, são as revistas, perguntam a alguém… Não há desculpa para não saber o que se passa.
Nas novelas, para além de construírem uma história para as personagens principais, têm que construir para as secundárias, num formato longo, diferente do cinema.
A lógica é a mesma, a questão é que um filme escolhe um corte muito específico, porque dura uma hora e meia, e nós fazemos uma hora por dia, durante 200 dias no mínimo. Portanto, a maneira de pensar e de estruturar é completamente diferente. É impossível comparar a qualidade. Mas hoje, em Portugal, para o dinheiro que temos disponível, já fazemos coisas com muita qualidade. No Brasil ficam loucos com aquilo que fazemos. O nosso diretor de projeto, o Sérgio Graciano, quando leu o guião disse-me “ó João, isto parece-me cinema. Portanto, nós vamos ter que fazer cinema aqui”. É engraçado porque começo a ver imagens, sobretudo do exterior, e percebe-se que há essa intenção ali. Tenho uma equipa que acredita que é possível fazer novelas que não sejam chapadas. É uma equipa que acredita que podemos fazer diferente, sem ser cliché. E depois as pessoas esquecem-se que a novela tem um papel social importante, porque é o maior influenciador nacional. Nós chegamos a muita gente todos os dias.
E que temáticas vamos poder encontrar em “Valor da Vida”?
Vamos ter várias. Estes dias falaram comigo sobre um caso de violência doméstica que temos na novela. Eu disse que nós não íamos falar de violência doméstica, mas sim de feminismo. Acho que há uma febre tão grande com as feministas que parece que os homens são sempre os maus. Mas a violência não é uma coisa exclusiva do sexo masculino, e está muito ligada a questões de poder. Acho que só não há mais mulheres que são agressoras porque ainda não estão, nessa situação de poder, equilibradas com os homens. Por isso, trago uns casos de violência doméstica invertidos, em que a minha intenção é pôr as pessoas a pensar que isto não é exclusivo do sexo masculino. Sem querer entrar muito a fundo, a novela não tem este nome por acaso. Quando comecei a criar a história, eu queria que a história e as personagens se interligassem com esta mensagem. O que é o valor da vida para cada um de
nós em função do lugar onde estamos? E o que somos nós capazes de fazer em nome disso? Nós sabemos que a
nossa vida é mais importante do que o desconhecido que vai a passar na rua. E depois, há aquelas pessoas que ganham dinheiro à custa da vida dos outros. Há gente que ganha dinheiro a atravessar refugiados. Há gente que trafica pessoas. Qual o valor da vida para uma pessoa dessas? E se for essa pessoa a estar em risco? Ou se for o filho? Se lhe tocar a ela o que ela andou a fazer a outros? A novela tenta “brincar” um bocado com estas ideias, de como o valor da vida muda em função do lugar em que estamos. Não é pedagógico, porque é retratado entre o drama e o entertenimento, mas as pessoas ficam a pensar naquilo sem saber. Em “Ouro Verde”, uma das maiores polémicas foi uma personagem transexual, um homem que se transformava em mulher e que foi assassinada, mas não teve nada a ver com o género. Havia um tipo maluco que matava toda a gente que o podia denunciar e esta personagem acabou por morrer como os outros. Nem tinha planeado matá-la na verdade, mas a história levou-me para ali. E ficou toda a gente chateada, porque matei o transexual. Mas até achei bom. A minha intenção era que as pessoas ganhassem simpatia por aquele rapaz que queria ser mulher, e o meu trabalho foi conseguido. Também tive uma polémica com os vegans. Tinha personagem ambientalista em que 95% do tempo cumpria com tudo, só que quando estava mais nervosa comia um bife às escondidas. Os vegans iam-me matando. O facto de ser suposto uma pessoa seguir um código, não quer dizer que o cumpra sempre, porque somos humanos e nós falhamos.
Voltando agora ao novo projeto.
Nós temos um protagonista que acorda todo desmemoriado. Toda a gente pensa que ele está morto há 20 anos e ele acorda no Líbano, perdido e sem saber o que lhe aconteceu. Quando ele chega a casa, a família fica stressada porque afinal está vivo. A ex-mulher, que casou com outro, está louca porque o marido que adorava está vivo. E ficaram todos a olhar para ele porque ele não envelheceu. Ele próprio não sabe explicar e pensa que pode ser um impostor. Isto levanta questões interessantes de identidade. Isto fala muito sobre a vida que se deve viver no presente e não no passado. E neste caso, é como se não conseguissem avançar sem entender o que é que aconteceu. Ele teve uma vida antes disto e quer saber qual foi e sem isso ele não consegue perceber quem é. Há pessoas que dariam tudo para poder apagar a memória, mas se não se lembrassem de nada, iam querer descobrir quem eram. Sem isso não se sentem inteiras. E sempre que as personagens tentam chegar ao passado, percebem que o importante é o agora. Nós vivemos a sofrer com o passado e ansiosos com o que vem a seguir. Neste ritmo de vida que vivemos, esquecemo-nos de viver bem no aqui.
Como é decidir o destino de personagens que os portugueses acompanham?
Sou um pequeno Deus (risos). Seja o que for que fazemos, isso banaliza-se ao fim de pouco tempo. A única coisa que não nos podemos esquecer neste trabalho é que há responsabilidade social. Eu escrevo a novela e depois tenho que a gerir. Se uma personagem morre, porque o ator tem uma indisponibilidade e não pode continuar na novela, as pessoas vêm-me “bater” a mim. Para o bem e para o mal, nós é que levamos com as coisas.
Ainda faltam muitos episódios para escrever?
Já começo a ver a luz ao fim do túnel, já passei da metade, são 200 episódios. Nunca corre como planeado, porque na novela está tudo muito em aberto. Temos uma linha mestre, que nos guia para grandes acontecimentos. E depende muito do meu humor, se acordo bem ou mal disposta, mas é mesmo assim. Escrevo um episódio por dia, e depende do meu humor.
E o que podem esperar os vimaranenses? Têm muito boas reações.
Ainda estes dias estive na cidade com a equipa, e vinham pessoas ter comigo a dizer que não viam novelas, mas que esta iam ver. Disse sempre na TVI que nós em Guimarães somos bairristas e todos vão querer ver. Acho que vão começar a ver por isso, mas depois vão continuar. Sou suspeita, mas estamos a fazer uma coisa muito diferente.