Neno: partiu um ícone do Vitória

Quando falava de cantar, os olhos brilhavam-lhe.

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O pai era um homem conservador (Salazarista nas palavras de Neno), não gostava que os filhos jogassem futebol, a cantoria também não lhe agradava. O professor dava tostões ao pequeno Neno para que este se calasse e o deixasse trabalhar em silencio. No caso de Neno, nada correu de feição ao senhor Augusto Barbosa Barros, este filho deu jogador de futebol e cantor.

Foto: DR

Neno e os irmãos sozinhos constituíam uma equipa de futebol de sete, na verdade são nove, mas naquela altura as meninas não jogavam futebol. Era através de acordos com a mãe, mais tolerante que conseguiam abertura para jogar, “tens de estar em casa antes do teu pai chegar”, dizia-lhes.

Jogar à bola, dizia, “era uma coisa de que gostava muito”, mas dizia-o como a grande maioria dos homens o poderiam dizer, recordando a sua meninice. Já quando falava de cantar, os olhos brilhavam-lhe e o sorriso, constante, tornava-se ainda mais expressivo.

A alternativa de ser “bandido” não se colocava lá em casa. O pai tinha acesso direto aos professores e os filhos tinham que apresentar boas notas. A vontade de dar uma boa educação aos filhos terá sido o motivo por que, após o 25 de abril, a família se mudou para a metrópole. Isso e as simpatias pelo regime do Estado Novo que o pai cultivava e que não lhe garantiam grande futuro em Cabo Verde.

Frio, quando falava da chegada a Portugal falava sempre no frio que sentiu no primeiro inverno. Impossibilitados de trazerem muitos haveres, a roupa era pouca e adaptada ao clima dos trópicos, também não havia dinheiro para comprar nova. O Barreiro nem é tão frio como o frio que havia de encontrar quando, mais tarde, veio para Guimarães, mas naquela altura era gelado.

O jogo da bola, na rua está claro, era a forma como os rapazes socializavam na década de 1970. Bom de bola e com uma capacidade natural para o relacionamento, num instante se enturmou no Barreiro.

Dava nas vistas a jogar na rua, era “elástico” (alcunha) e não demorou a aparecer no Santoantoniense. Tinha 13 anos e foi jogar com os miúdos de 15, porque não havia iniciados no clube. Do pai recebeu o aviso: “o primeiro chumbo acaba-se o futebol”.

“Em Cabo Verde toda a gente é do Benfica, até hoje”, disse uma vez numa entrevista. Nos tempos do Santoantoniense e depois no Barreirense, Neno também gostava das Águias, pelo Bento e, claro, pelo Eusébio. Mas confessou que também simpatizava com o Sporting, por causa do Damas.

Aos 15 anos, Benfica, Sporting e Vitória de Setúbal andavam atrás do rapaz que ainda nem jogava com luvas. No ano que subiu a sénior, o Barreirense desceu à III Divisão. Na equipa havia dois guarda-redes experientes e chegou o rapaz dos juniores. O certo é que, mesmo a contragosto do treinador, Neno impôs-se, no primeiro jogo que fez até penaltis defendeu.

Naquela altura, o Barreirense era o viveiro do Benfica. Aos 22 anos, naturalmente Neno assinou pelo clube da Luz, ganhava 5 contos, estávamos em 1984. O mítico guardião Bento ofereceu-lhe as primeiras luvas. “Era o meu ídolo”, confessava. Continuou a jogar no Barreirense e a treinar no Benfica, quando foi mesmo para o Benfica para jogar, ganhava 100 contos.

Confusão de treinadores, as coisas nos Benfica não correram bem e Neno começou a fazer pressão para sair. Foi assim que veio para Guimarães. “Quando cheguei senti-me logo em casa”, dizia. Esteve dois jogos no banco, mas rapidamente tomou o lugar de Jesus e fez uma época espetacular. Tão boa que o Benfica o chamou de volta. Mantinha contrato com o Benfica.

Voltou a casa dos pais, no Barreiro. As idas para os treinos eram na carrinha do Bento. O Bento tinha um negócio de peixe e a carrinha tresandava. Contava que aprendeu muito com o antigo guarda-redes da seleção, nesse tempo. Mesmo assim foi para o Vitória de Setúbal, ser suplente do Bento era um estatuto, mas o que queria era jogar à bola.

Foi à beira do Sado que Pimenta Machado o foi buscar.  Fez os jogos todos e conquistou a Supertaça. As boas exibições em Guimarães fizeram com que o Benfica, com quem mantinha contrato, voltasse a rondar. Por esses dias já tinha envergado a camisola da seleção A, um feito para um jogador do Vitória, numa altura em que o peso dos “grandes” na seleção era ainda maior que hoje.

Era o tempo de Eriksson e de Silvino a guarda-redes. Voltou a deixar Guimarães de coração partido. Mas Guimarães, a ele não lhe sairia do coração nunca mais, casou aqui, em 1990. Quando volta à Luz, uma parte de si já fica aqui na Cidade Berço.

Foi dividindo a baliza com Silvino, de tal forma que é difícil dizer quem era o titular. Foi duas vezes campeão pelas Águias. Na seleção havia Victor Baía e Silvino, os tempos não eram fáceis para chegar à baliza.

“O Michel foi o melhor guarda-redes que eu conheci na minha vida. Michel Preud’homme e Bento, não há mais ninguém”, opinião de quem sabe do que fala e Neno sabia.

Com Preud’homme, “o melhor do mundo”, na baliza do Benfica, Pimenta Machado voltou ao ataque e ultrapassou o Sporting na corrida pelo Neno.

Na última época em Guimarães magoou-se num treino, caiu para dentro da baliza e ficou com os dentes presos na rede, deslocou um maxilar e foi operado nessa noite. Voltou como suplente do Pedro Espinha, mas por onde o Vitória andava, a bancada levanta-se para o aplaudir. Amor com amor se paga.

Mas, não era homem de banco de suplentes, por isso, passou para a direção técnica. Em 1998/99, era diretor técnico e terceiro guarda-redes. Foi diretor desportivo, secretário técnico, treinador de guarda-redes, relações-públicas.

Este último cargo assentava-lhe como uma luva. Era naturalmente empático e depois tinha uma vocação para o palco, gostava de cantar, o seu ídolo era Júlio Iglésias que deixou de jogar futebol para se dedicar à música, no ano em que Neno nasceu, 1962.

Gravou CD´s e teve oportunidade de conhecer o seu ídolo musical que lhe ofereceu um fato e uns sapatos. Nada demais, afinal Neno era um excelente promotor das músicas do Iglésias que cantava com primor. Trinta anos depois, ainda vestia o fato que guardava religiosamente.

 Cantava, principalmente para ajudar, se nunca seguiu uma carreira de cantor profissional não foi por falta de talento, foi porque o futebol continuava a tomar-lhe o tempo. Prisões, hospitais, festa de angariação de fundos, Neno lá estava de micro em punho.

Deixou-nos na quinta-feira, dia 10 junho, tinha 59 anos.

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