O morro dos denegados
Por Carlos Guimarães.
por Carlos Guimarães
Médico urologistaMaria com movimentos tremidos, esforçados e lentos era incapaz de sacudir as moscas que zuniam à sua volta e passeavam no rosto para se saciarem da saliva ressequida que escorria da boca. As lágrimas encharcavam os olhos vazios de expressão com as pálpebras inferiores vermelhas de sangue reviradas do avesso, a pele cobria-lhe diretamente os ossos e a carne era tão escassa que abria chagas aqui e ali ao longo do seu corpo ossudo. O juízo, o desgraçado do juízo teimava em manter-se fino nas memórias de ontem e na crueldade do mundo de hoje, não fossem as mãos trémulas e ainda conseguiria enfiar a linha numa agulha. Apesar de cá estar, sentia-se expulsa, rejeitada, um fardo inútil e pesado. Ainda dava passos pelo seu pé, subia e descia um degrau com a dificuldade dos inválidos, por vezes saía fora da porta até ao quintal abandonado para sentir o sol, a brisa e o perfume áspero das ervas daninhas e do musgo que cobria as pedras do muro, o suficiente para recordar os dias de escola, a páscoa ou o natal. Achava a morte impiedosa, porque se piedade tivesse já a teria levado. Todas as semanas, no dia que mais lhe aprouvesse, aqueles de quem sempre cuidou lhe lembravam que as suas vidas ocupadas não a poderiam ter mais. Teria de partir para o exílio, cruzar a fronteira que nunca desejou transpor e entrar no morro dos denegados, dos refutados, no depósito de velhos à espera da porta que se fecha para sempre.
O juízo perfeito era o seu maior inimigo e ainda lhe permitia ter emoções fortes num corpo quase inerte e cogitar inveja dos dementes inexpressivos ou que dos que riem de nada, como eles próprios, nada. As noites longas ressoadas em mijo e merda fediam mais do que as dores e menos do que as palavras escutadas no desamor de quem tanto amou. Todas as semanas a conversa da partida… “não temos vida para ti” … “ainda vamos primeiro do que tu”… “tem de ser”… “é melhor para todos”. Partiu. Entrou. Ficou.
Foi despida por uma mulher que nunca viu, esfregada como uma velha tapeçaria sem valor entre fedores de chagas abertas e podres, unhas grossas verdes e dobradas, calos gretados nos calcanhares escuros. A maior vergonha dos pobres, exposta de corpo aberto quase trucidado, mais fedorenta que os fedores do próprio corpo na insuperável falta de carinho e de amor perdido. Nojo da falsa boa gente que protege os idosos e os abriga, nojo dos políticos, dos governos, das eleições e dos partidos, nojo da escara do tamanho de um punho que cresce entre as nádegas mirradas que formam o rego do cu. Uma velha putrefacta de juízo perfeito no morro dos excedentários, menos que nada comparada com a proteção dos animais e seus direitos, menos que nada comparada às manifestações pelos “direitos, liberdades e garantias”, menos que nada comparada à precariedade do emprego. e à superpotente emergência climática. Maria já não tem lágrimas para derramar, secou tudo dentro de si. A sua nudez esfregada e entregue a uma desconhecida transforma-se na caricia fofa de uma toalha que a enxuga com cuidado e lhe traz algum calor ao corpo gelado. A metamorfose perfeita ao entrar num pijama cardado quentinho e numa cama com lençóis lavados. Sentiu-se transportada até aos mimos de sua mãezinha. Uma cama alinhada com outras camas de condenados de olhares vazios e juízos perdidos para sempre. Aquele ténue momento de felicidade sucumbiu de imediato no regresso ao mundo dos rejeitados.
Ao terceiro dia Maria morreu. Morreu de vergonha, de esquecimento de um Deus adormecido, de saudades dos filhos que a desamaram. Morreu sozinha durante a noite que a engoliu durante o sono, o sono dos justos na morte santa há muito tempo pedida e não consentida. Não sei se partiu para um mundo melhor, mas partiu para um mundo sem homens rascas, sem multidões que apregoam a tudo e oferecem o vazio, um mundo sem hipócritas mentiras e injustiça, um mundo que na verdade não existe.
Não sei se Maria ficou viva no coração de alguém, talvez tenha ficado gravada nas lágrimas da moça que a enxugava e lhe vestia o pijama quentinho antes de deitar.
PUBLICIDADE
Partilhar
PUBLICIDADE
JORNAL
MAIS EM GUIMARÃES
Dezembro 14, 2024
Não foi desta que o Moreirense inverteu a tendência de maus resultados fora de casa. Foi perder ao Nacional da Madeira, este sábado, pela margem mínima.
Dezembro 14, 2024
Inserido na programação de Guimarães Cidade Natal, há concertos e várias iniciativas que animam a comunidade por estes dias.
Dezembro 14, 2024
No Natal, os doces tomam conta das nossas mesas. A família reúne-se para partilhar conversas, reforçar laços e trocar presentes. Um momento que merece ser saboreado.