Tempos de incertezas

Por Mariana Silva.

Mariana Silva
Por Mariana Silva, Deputada na Assembleia da República (Os Verdes) O mundo foi interrompido por um vírus e as televisões meterem-nos pelos olhos dentro o inimaginável – países a fechar fronteiras, grandes cidades vazias de pessoas, de carros, de vida. A realidade ultrapassa sempre a ficção e em Portugal este cenário não foi diferente do resto do mundo. Com as pessoas confinadas às suas casas, a consumir o que as televisões lhes dão, as notícias escolhidas a dedo, os sermões de filosofia barata, o medo exacerbado a entrar na cabeça de cada um que se protegeu como lhe foi indicado para, assim, travar as redes de contágio. Em tempo de confinamento obrigatório previa-se que o mundo não seria mais igual. As pessoas sentiram falta dos seus familiares e dos amigos e de reunirem todos à volta de uma mesa em conversas longas e partilha de petiscos. Em tempos de incerteza tudo parece válido, em tempos de medo e de experimentação tudo é válido. O que se previa de tempos de amor, de solidariedade, de amizade, de paz esgotou-se em menos de um fósforo. Ódios que estavam guardado à espera de uma época em que se poderia soltar a língua, apareceu primeiro nas redes sociais em que, por cada hora a mais sentados no sofá, houve quem se achasse confortável na possibilidade de maldizer. A liberdade de expressão, o não passar pelos visados do ódio na rua e olhá-los nos olhos, transformou-se numa bola de neve que de dia para dia se foi adensando. Com o gradual desconfinamento, houve azedumes que largaram as redes sociais e passaram para as janelas e para as ruas. Qualquer coisa serve para se apontar o dedo: a máscara que não se usa em espaços abertos, ou em momentos em que é opcional a sua utilização, a certeza de que os metros de distanciamento não estão a ser cumpridos, as vezes que a vizinha saiu de casa ou o primeiro jantar que ofereceu à filha que já não via há dois meses. Alguns resolveram libertar o agente de segurança pública que existe dentro de si e lá ficaram esquecidos os tempos que se previam de amor, de solidariedade, de amizade e de paz. Lamentavelmente, a indignação que se anuncia perante coisas banais parece faltar sobre o facto de não existirem transportes públicos ao dispor das populações em todo o território português, porque onde já era escasso e com as escolas fechadas os operadores alegam não ser viável operarem. E assim, ficam milhares de pessoas sem o direito à mobilidade. Onde está agora esse ódio dos que estão sentados no sofá? Onde estão as palavras de apoio aos que ficam infectados porque os seus locais de trabalho não cumpriam com as normas exigidas da DGS, aumentando o risco de contágio? Faltam palavras de protesto para o facto de um só empresário ter colocado 500 trabalhadores em lay-off, mas a seguir comprar uma parte de uma grande empresa de comunicação. Onde estão os que se revoltam pelos milhares de desempregados e por aqueles que não aguardam pela crise, porque já a sentem na pele. Quem consegue compreender o ódio dos que vão acumulando teorias à volta das espumas do dia, tentando abafar os problemas concretos e que não surgiram com a pandemia? Porque não se revoltam, estes senhores da verdade do sofá, com a falta de subsídio de risco para os trabalhadores que recolhem o lixo e que nunca pararam? Tantas certezas escorrem das reflexões dos que esperavam a oportunidade da pandemia para acabarem com as celebrações do 25 de Abril, com as celebrações do 1º de Maio em que trabalhadores, dirigentes dos sindicatos e detentores de cargos políticos e todos os que se associaram estavam a cumprir as normas da DGS, de pé, de cara levantada com a certeza de que os tempos de amor, solidariedade, de amizade e de paz não são palavras vãs e por isso é necessário continuar a lutar.

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