A POLÍCIA E O FORA DA LEI
ESSER JORGE SILVA Sociólogo
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por ESSER JORGE SILVA
Sociólogo
Por estes dias um agente da polícia com patente de subcomissário vem sendo retalhado na praça pública. O óbice da tortura tem a ver com o seu desempenho na abordagem a um cidadão que dele precisava: deu-lhe uma coça de bastão em frente aos filhos e ao avô dos filhos. E, na sociedade da imagem reproduzida, foi filmado exercendo o que entende por atividade policial. Partilhado por todo o globo das redes da internet, a voragem da ação filmada gerou um instituto, cada vez mais, produto da alienação coletiva: a indignação.
Afasto-me todavia do maniqueísmo que os discursos trouxeram às redes sociais e declaro-me desde já desligado de qualquer noção de bem e do mal que por aí se possa expressar em relação a este homem. Até porque no momento em que se deu o filme ele não era um indivíduo. A sua farda azul, o seu capacete preto, os seus artefactos de defesa, a posição do seu corpo e a sua abordagem, tornavam-no igual a muitos outros polícias. Estava por isso destituído da sua condição de indivíduo. Como todo o corpo da polícia agia segundo um cânone baseado numa cultura.
Mas há aqui uma questão de partida muito importante: o uso da violência legítima é monopólio do Estado. Só a ele, Estado, e a mais ninguém, compete usá-la. Como o Estado é um ente invisível, atribui às instituições o direito de uso de violência, regulando como fazê-lo. É estatuído assim aos tribunais a gestão da violência legítima, ficando determinada a intensidade aplicável a cada tipo de crime. De resto, no mundo ocidental, as formas de violência particular são cada vez mais intoleradas. E convenhamos, nas circunstâncias atuais de anulação social em que as pessoas são acometidas, o que se estranha é que as taxas de crime estejam a baixar há mais de dez anos.
A forma como se vê, por vezes, o corpo da Polícia a agir perante os cidadãos faz-nos pensar que Portugal é habitado maioritariamente por criminosos. Tal leva-nos a considerar que há um erro conceptual na formação profissional. E se atualmente, a maior parte das vezes, a abordagem policial ao cidadão já se faz em tom de voz neutro – o que por si configura um avanço -, as suas práticas perante o inabitual, que nem sempre se traduz em desordem ou crime, mostra que há muito caminho a percorrer para se transformar num corpo profissional saudável.
E é, por projetar essa imagem disforme que muitos cidadãos – incluindo o autor deste escrito – têm medo da polícia. Alguns exemplos: polícias perseguindo e disparando em zonas residenciais contra “furtadores” é uma imprudência colhida nos filmes da televisão mas que pode terminar na tragédia da morte do filho do ladrão, um inimputável inocente e na consequente condenação e prisão do polícia artilheiro! Relatórios internos da polícia afirmando que determinado indivíduo atingido pelas costas resultou de “um disparo para o ar” faz do cidadão um imbecil e não pode legar confiança. Detidos aparecendo com olhos negros da brutalidade para lhe arrancar uma confissão gera, regra geral, a absolvição do potencial criminoso por culpa do ato da polícia. E, por fim, aquele hábito um tanto eufemístico de, nos comunicados da polícia após situações de crise, se referir o número de feridos do corpo policial como se, do outro lado, estivesse um inimigo estrangeiro cujas baixas não contam.
Ora, um Polícia é um profissional da ordem, por vezes chamado para lidar com situações de indivíduos fora da lei. Quando posto perante um fora da lei nada o obriga a sair fora da lei. Por isso não pode pura e simplesmente sacar de pistola, ou de bastão, apenas porque está um potencial violador das leis. Não pode desatar aos tiros ou à bastonada apenas porque o “outro” lhe atiçou com palavras. É-lhe pura e simplesmente vedada tal atitude. Quando um polícia, porque posto perante um fora da lei, se desloca da fronteira da lei e passa para o outro lado, transforma-se, no exato momento num fora da lei. E com isso, torna-se igual ao indivíduo que ele combatia. Escolhe assim o lado em que quer estar.
Há todavia um senão e que se resume na seguinte perspetiva: muita gente cuja vida rola na repetição habitual dos dias e se expressa segundo uma moral coloca as coisas assim: o polícia é bom porque luta contra ladrões e logo tudo lhe é permitido para prender o mau do ladrão. Para além da ideia de que a ordem legal ficaria suspensa para o polícia e continuaria a vigorar para o ladrão, o que constitui um anacronismo, esta é uma construção gerada sobre a mesma perspetiva ideológica que lega ao “roubo” à ação policial enquanto o “desvio” é exclusivamente para a ordem “judicial”. E do ponto de vista jurídico o “roubo” ou o “furto” está acometido ao ladrão enquanto o “desvio” é feito por alguém sem classificativo. O primeiro associa-se às classes populares e o segundo às classes altas. A PSP devia pensar nisso, dando como exemplo quantos banqueiros lustrosos prenderam no último século.
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