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ATÉ QUANDO EU QUISER

PAULO CÉSAR GONÇALVES Dramaturgo

avo

por PAULO CÉSAR GONÇALVES

Dramaturgo

(O verde vestido tapava-lhe as pernas que tremiam como varas da mesma tonalidade. E chorava. Os aplausos ecoavam. Vieram os Parabéns. E um ramo. Depois, os cumprimentos. E mais aplausos. Muitos mais.)

(Uma hora antes)

– É a tua vez, Maria. Aguarda só mais um pouco, até que chamem pelo teu nome.

O anúncio fez com que um intenso friozinho lhe invadisse a barriga. Os bastidores eram um reboliço de gente e de vaidade, de olhares cortantes e distantes. Sentada numa cadeira, já muitas vezes questionara se teria feito a opção mais sensata. Para quem não gostava de chamar a atenção, convém referir que cantar em público não é a forma mais esperada de continuar nessa zona de conforto chamada anonimato. Mas a inabalável vontade de homenagear a avó fizera-a chegar até ali.

Maria estava na final do concurso de talentos da sua Escola. Havia sido seleccionada após um primeiro casting. As imagens chegavam-lhe em jeito de filme em câmara lenta: o momento em que se apresentara perante o júri composto por professores e anunciara, após solicitação do mesmo, o que iria cantar.

– A Desfolhada Portuguesa.

Recordava o espanto estampado na face de cada um deles e também as perguntas que se seguiram:

– Porquê essa canção?

– A Desfolhada? Que raio te deu?

– Já ninguém gosta disso. Não queres cantar outra? Canta uma mais “pop”, em inglês.

Lembrava-se que vacilara, não porque fosse seu desejo mudar apenas porque lhe haviam sugerido. Hesitara por causa da sua natural timidez. Talvez percebendo a sua insegurança, uma professora decidira apertar um pouco mais com ela, questionando a razão de ela querer cantar. Aí, firme, respondera-lhe que não estava no casting para ser interrogada, mas sim para actuar. O júri admirou-lhe o arrojo. E, pouco tempo depois, a voz. Por muito que a escolha da canção não agradasse, ninguém conseguira ser indiferente ao talento da menina tímida. A decisão fôra unânime: Estava na final. E quão radiante ficara!

– Maria, afinal ainda não é já. Tens um grupo de dança à tua frente. Só mais uns minutos.

Esta nova chamada trouxera-a momentaneamente para o tempo das coisas presentes. Num piscar de olhos, voltara ao sofá da casa da avó, aos nove inocentes anos, aos lanches depois da escola primária, ao fado fluindo do velho rádio da cozinha. Amália Rodrigues cantarolava-lhe aos ouvidos. Os seus amigos chamavam-se Adriano Correia de Oliveira, Tonicha, Dulce Pontes, Carlos do Carmo, Paulo de Carvalho, Luiz Goes, Zeca Afonso e Fernando Tordo. E outros mais. Lembrara-se daquele exacto dia, numa qualquer tarde de Março, em que vira e escutara, na televisão, uma Senhora de Minho vestida cantar como nunca alguém o havia feito. Inquiriu, enquanto segurava o lanche numa das mãos.

– Vó, quem é?

“Ai, meu amor, essa Mulher, essa Senhora…é a Simone de Oliveira, e já ninguém faz música assim. A letra, amor, a letra…é do Ary. O maior letrista que o mundo já viu e ouviu.”, respondera a avó.

Tinha sido naquele preciso momento que tudo começara. Pediu:

– Vó, podes passar-me a canção para uma folha do caderno?

Como era bom e harmonioso ainda conseguir trautear as exactas palavras usadas naquela ocasião.

– Claro, meu amor, mas guarda-a bem. Um dia hás-de saber cantá-la, vais ver. Hás-de cantá-la para a tua velha avó.”

Não chegara a fazê-lo. Uma das malditas doenças que assolam o mundo levara-lhe, em braços, a avó. A doce senhora deixara-lhe um legado, mas não só o da música: o mesmo transformar-se-ia em incessante busca por palavras oriundas do mesmo sítio de onde as outras haviam brotado.

– Maria, é a tua vez, rápido!

A rapariga parecia estar a acordar de um lento mas intenso sonho. Apressada, muito apressada no interior, mas aparentemente calma por fora, juntou as mãos. Pensou na avó, e, de seguida, pegou numa velha folha de caderno que se encontrava pousada numa das cadeiras. Observou-a cuidadosamente, acariciando com o olhar os suaves contornos da caligrafia da avó. Dobrou-a até que fosse possível fazê-la caber na mão e entrou em palco. De punho cerrado.

  • Texto dedicado à eterna memória de todos aqueles que engrandeceram a Música Portuguesa, veículo essencial do Vinte e Cinco de Abril de Mil Novecentos e Setenta e Quatro.

NOTA: Por expresso pedido do Autor, este texto não obedece às normas e regras do novo acordo ortográfico da língua Portuguesa. Mais se adianta que o Autor deste artigo tem tanta consideração pelo referido acordo como tem pelo actual presidente da república. 

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