CRÓNICAS POUCO CRÓNICAS (E ASSIM SUCESSIVAMENTE)

PAULO CÉSAR GONÇALVES Dramaturgo

avo

por PAULO CÉSAR GONÇALVES

DramaturgoESTRUGIDO – uma história de embalar

Guimarães (Pio Nono, Penha, Costa)

Sexta – feira, Catorze de Fevereiro de Dois Mil e Catorze

 

Felismina e Tónio olham a cidade de Guimarães quase adormecida. Ou talvez não. É dia de São Valentim, são muitos os casais que, pela noite dentro, trocam juras de amor a roçar o romélico. Ali, no Pio Nono, não é diferente: os vidros dos carros embaciados, o baloiçar dos amortecedores, as rezas em jeito de gemido, e por aí adiante…

Está-se no Inverno e o frio (ainda) aperta. De forma a enganar o gélido vento, Felismina e Tónio cobrem-se com uma manta laranja. Juntinhos. Agarradinhos. Abraçados. Sentados na Famel Zundapp do Tónio.

Tónio – Amo-te muito, minha tarequinha.
Felismina – Eu também, coraçãozinho de “açúcre”.
Tónio – Queres ficar comigo para sempre?
Felismina – Não, só até morrer.
Tónio – Ensinas-me a fazer sopa?
Felismina – Claro! E estrugido também.

Estavam os dois nestas considerações (enquanto que nos carros se ensaiava o movimento celebrizado por Leonardo Dicaprio e Kate Winslet no filme “Titanic”, nomeadamente aquele em que a moça faz deslizar a sua mão por um embaciado vidro) quando o Tónio, movido por um impulso, estica o braço e apanha as calças do chão. Vai a um dos bolsos e retira uma pequena caixa. Estende-a à Felismina.

Felismina, surpreendida – É para mim?
Tónio, envergonhado – S…Sim.
Felismina, rosadinha – Oh…Obrigado, xuxu.

A moça abre a caixa. Dentro da mesma, um panado. A serigaita admira-se.

Felismina – Um panado?
Tónio – É, podia dar-te a fome e mais vale andar prevenido.

A Felismina encolhe os ombros, mas não se faz rogada: começa a comê-lo com vontade. De repente, sente algo bastante duro em contacto com os dentes.

Felismina, com esgar de dor estampado na cara – Au! Que é isto?

Tónio sorri. Felismina segura, entre os dedos, aquilo que parece ser uma aliança. É então que o moço lhe faz a pergunta mais importante da sua vida:

– Mina, queres casar comigo?

A Felismina está perplexa. Olha fixamente para Tónio. Olha o anel. Coloca-o, ainda cheio de bocados de pão ralado e gordura. Suspira. Uma lágrima corre-lhe pela face. Respira fundo. Responde:

– É claro que quero.

Os dois abraçam-se. A manta cai e ficam ambos nus sentados na mota. Nus não, que o Tónio tem as meias calçadas. Os casais que estavam nos carros da “vizinhança” aplaudem efusivamente. Fica logo ali apalavrada a boda para o dia Catorze de Fevereiro de Dois Mil e Quinze, na Basílica de São Valentim, Umbria, em Itália. A Felismina sempre sonhara casar na Igreja de Nossa Senhora da Lapinha, em Calvos (a sua freguesia), mas acedera à ideia do amalucado namorado.

Do alto do seu pedestal, Pio Nono testemunha, silencioso (como é de resto seu apanágio), aquele “espectáculo”.

(Arrabaldes de Guimarães)

Quinta-feira, Doze de Junho de Dois Mil e Catorze

A Felismina tem andado distante. Dá a desculpa de que anda preocupada com alguns assuntos, mas Tónio acha estranho. Infelizmente, as suas suspeitas materializam-se: a moça pedira a uma das suas amigas, a Belmira, que fosse entregar uma carta ao Tónio. Esta vai ao encontro do rapaz. Leva numa mão a carta e com a outra segura o gato que o Tónio havia oferecido à Mina no Natal, o Rissol.

Tónio, estranhando ver por ali a Belmira – O que estás aqui a fazer? E por que raio trazes o Rissol?

Belmira, com ar triste – Tónio, não trago boas notícias. A Mina fugiu.

Tónio deixa-se cair. Fica ajoelhado.

Tónio, com a expressão mais triste deste mundo – Como fugiu? Mas nós vamos casar…

Belmira abana a cabeça. Poisa a mão no ombro do moço enquanto segura o Rissol debaixo do braço.

Belmira – Acabou, Toninho. A Mina fugiu em busca da sua felicidade. Não vale a pena perguntares para onde. Acabou. Ela não teve coragem de te abordar. Apenas pediu que te entregasse o bichano e esta carta.

Tónio chora. Belmira dá-lhe o gato para os braços e poisa a carta junto a ele. Despede-se. Tónio abre o envelope. Retira o papel. Começa a lê-lo em voz baixa:

“Toninho,

desculpa desiludir-te. Não sou moça para ti. Tu mereces melhor. Sempre mereceste. Adorei todos os momentos que passei contigo, mas, não dá mais. Não te quero enganar, o meu coração está noutro lado. Devolvo-te o anel (se te esforçares muito, ainda consegues capturar o cheiro a panado) e o Rissol. Não posso tomar conta dele. Sempre fui alérgica a gatos, mas aceitei-o porque pensei que isso passaria. Por favor, não te prendas à ideia de um dia poderes vir a ficar comigo. Acabou. Mesmo. Distrai-te. Vai ao Palmeiras. Sai com o Quim e com o Zé Nando. Arranja uma namorada que te mereça. A Quina. Ou a Zefa. Ou a Odete Soraia. Desculpa por tudo (até por aquele arranhão na nádega esquerda). Foste e és muito especial.

Mina”

Tónio retira o anel. Guarda-o no bolso. Agarra o gato. Fica a olhar para o horizonte.

Guimarães (Santuário de São Torcato)

Sexta-feira, Treze de Junho de Dois Mil e Catorze
É dia de Santo António de Lisboa, o famoso casamenteiro. Tónio, devastado pelas inesperadas notícias, dirige-se ao São Torcatinho. Conta-lhe tudo. Espera um milagre. Faz uma promessa: se conseguir recuperar a Mina oferecerá quatro bois ao Santinho. O Santo, deitado na sua urna, não reage. Afinal de contas está morto.

Mais abaixo, num dos vários altares da igreja, encontra-se Santo António, o do sermão aos peixes, o lisboeta mais venerado à face da Terra. Enche-se de vida (talvez por intercepção de São Torcatinho) e vai ter com o Tónio. O moço, ajoelhado, não dá fé da presença. O Santo fala-lhe:

Santo António de Lisboa – Ó desgraçado…

O Tónio assusta-se ao ver o Santo. Agarra-se a um dos bancos da igreja. Santo António continua:

– O São Torcato acabou de te ajudar. Ele não tem a pasta dos casamentos e, como tal, “animou-me”. Olha lá, não tens vergonha? Foste logo comprometer-te no dia do parolo do São Valentim? Valha-te Deus.

O menino (o Jesus) que estava ao colo do casamenteiro abana a cabeça em sinal de reprovação. Tónio continua sem falar. Só pestaneja. Santo António prossegue:

– São Valentim…São Valentim…Que carago! Modernices! Mas deixa estar…deixa estar. Eu vou resolver isso. Vou falar com essa fraude! Entendido?

O Tónio acenou em sinal de concordância. O Santo sumiu-se num abrir e fechar de olhos. O moço sai da igreja pelo próprio pé. Não contará a ninguém o que acabara de testemunhar por medo de passar por maluco.

Noutras partes que não as terrenas, Santo António, já mais espírito do que imagem de andor, vai ter com São Valentim. Antes disso, entrega o Menino (Jesus) à babysitter (a Senhora do Leite).

Estava São Valentim armado em galã quando Santo António o aborda.

Santo António, com modos arrogantes – Ouve lá, ó palerma…

São Valentim, mal disposto – Olha este…O teu tempo já passou, ó careca.

Santo António, desafiador – É? Não fazes nada de jeito. Tudo o que de ti vem dá barraco. Olha o Tónio…

São Valentim – Que Tónio?

Santo António – Não disfarces! O que se comprometeu no teu dia…

São Valentim, confuso – Não estou a ver…Não tenho como conhecer todos…

São António, contundente – Desculpas…Desculpas…és uma fraude!

São Valentim, ameaçador – Não tornes a repetir isso, ou…

São António, cheio de peito – Ou o quê? (arregaça as mangas) Eu e tu, aqui, agora. Boxe.

São Valentim, confiante – Força.

Num ápice, aparece o ringue (mais rápido do que a praça de touros de Guimarães1). A notícia espalha-se. Aparece o público (constituído por muitos santos e demais criaturas celestiais). Aparece São Pedro, trajado a rigor (de árbitro). Vem Deus (de nevoeiro a tapar-lhe a cara) e Jesus Cristo (grande como está, Santo António já não pode com ele ao colo). El Rey Dom Afonso Henriques é barrado à entrada (como se sabe, o Primeiro de Portugal esteve para ser Santo).

O Mestre de Cerimónias dá as boas vindas. Feitas as apresentações, entram os protagonistas. Primeiro, Santo António, ao som de “Lisboa, Menina e Moça”, tema popularizado por Carlos do Carmo. Traz um roupão com a inscrição “O Garanhão de Lisboa”. Segue-se São Valentim, ao som de “Always”, dos lamechosos Bon Jovi. O seu roupão é vermelho forte e exibe nas costas a cara da “Hello Kitty” (ao jeito dos presentes de dia dos namorados). O árbitro, São Pedro, chama os dois ao centro do ringue. Explica-lhes as regras. Os dois olham-se com fúria e desprezo. Ouve-se a sineta. Inicia-se o combate. Santo António atira-se a São Valentim com toda a fúria. Do nada, uma voz:

– PAROU !!

Toda a gente volta a cabeça na direcção daquela voz, até mesmo os “lutadores”. Depressa se escutam, vindas dos mais desatentos, as mais variadas reacções:

– É um Talibã!
– É nada, é o guarda – redes suplente do Marítimo!
– É o Barbas do Benfica.

O Santo António olha para a criatura e pergunta-lhe:

– Olha lá, tu não és aquela que venceu o Festival da Eurovisão? Conchita? Vens cantar, moça? Não vês que estamos a combater?

O São Valentim olha-a com atenção. Os santos que se encontravam na plateia reconhecem-na. Santa Quitéria está apreensiva. Deus leva as mãos à cabeça (à nuvem, neste caso). Jesus idem. São Pedro decide intervir:

– Liberata, que fazes aqui?

Ao ouvirem a pergunta os dois “pugilistas” percebem de quem se trata. Liberata, Santa Liberata, toma a palavra:

– Ora, venho pôr ordem na casa. Ninguém vos mete juízo na cabeça? (Olha para Deus e para Jesus Cristo. Deus disfarça, Jesus assobia) Nem aqueles impõem respeito? Homens…Santo António, tu andas doudo.

Santo António, indignado – Eu? Mas…

Santa Liberata – Mas nada! Nunca gostaste do São Valentim porque ele veio roubar-te protagonismo. Admite! Há lugar para os dois. Aproveitaste este caso do infeliz Tónio para lhe cair em cima, mas ele não tem culpa.

São Valentim acena em sinal de concordância. A Liberata estava a falar bem. Continua:

– Achas que só porque eles prometeram casar um com o outro no dia do Valentim a coisa tinha de correr bem? Ele não é responsável pelo falhanço. Queres casamentos à força?

Santo António quase resignado – Não, mas…o São Torcato é que me chamou…

Santa Liberata – Não há mas nem meio mas! O São Torcato é pior do que tu! Doudo! Parece que está para ali a dormir, mas ele sabe-a toda. E quereis saber mais? A Felismina deixou o Tónio porque ela, na verdade, está apaixonada por outra pessoa.

– Por quem? – Pergunta o Santo António.

– Pela Belmira. A Felismina fugiu à frente, a Belmira vai-se-lhe juntar. O pobre do Tónio não imagina. Nem precisa. Um dia ele compreenderá.

O espanto é enorme. São Valentim sorri. São Pedro também. Santo António coça a careca.

Santo António – Posso casá-las?

Liberata ri. Ri muito. A pergunta fica no ar. Sem resposta. O “combate” termina. Os três santos juntam-se e discutem o futuro do Tónio. E da Felismina. E da Belmira. E de tantos outros.

NOTA: Por pedido expresso do autor, este texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico.

Apontamentos:
– Santa Liberata, ou Vilgefortes, era, segundo a lenda, filha adolescente (cristã) de um rei (governador?) medieval no território onde agora é Portugal (crê-se que na região de Braga). Ela havia feito um voto de castidade, mas o seu pai ordenou que se casasse com um rei pagão. Resistindo ao casamento indesejável, rezou a Deus para que este a tornasse feia de forma a provocar repulsa ao noivo. Deus terá respondido às suas orações e, do dia para a noite, tornou-a feia e fez com que lhe aparecesse uma farta barba. Acabaria martirizada pelo próprio pai. Vários grupos ligados ao movimento Gay têm apontado esta Santa como a sua Padroeira (nomeadamente no Reino Unido);

1 Na madrugada de Vinte e Oito de Julho de Mil Novecentos e Quarenta e Sete, ardeu por completo a Praça de Touros de Guimarães, sítio onde eram esperadas as Corridas das “Gualterianas”. Horas depois do grande incêndio, os vimaranenses, impulsionados pelo amor à terra que os viu nascer, decidiram reconstruir a empreitada. Cinco dias demorou. O feito espantou toda a gente.

 

São Valentim

O Imperador Romano Cláudio II proibira, por volta de 250 DC, o casamento durante as guerras. Esse Imperador acreditava que os solteiros eram melhores combatentes. Apesar da proibição, o Bispo Valentim continuou a celebrá-los em segredo.

Um dia, acabou por ser descoberto e foi preso e condenado à morte. Enquanto estava preso, muitos jovens enviavam-lhe flores e bilhetes, dizendo que ainda acreditavam no amor. Enquanto aguardava na prisão o cumprimento da sua sentença, apaixonou-se pela filha cega de um carcereiro a quem, milagrosamente, devolveu a visão. Antes da execução, Valentim escreveu-lhe uma mensagem de adeus, assinando “O teu Valentim”.

Valentim foi decapitado em 14 de Fevereiro de 270.

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