O CANTO

PAULO CÉSAR GONÇALVES Dramaturgo

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por PAULO CÉSAR GONÇALVES

DramaturgoA chegada da noite não traz apenas outras cores. Vem, agarrada a elas, a melancolia. E as recordações. E as histórias. Há muitos anos, e quando ressalvo os muitos, significa que ainda cá não estava para testemunhar com estes mesmos olhos o que quer que fosse. Sei-o, tão só, porque foi-me contado. Mas escrevia eu, há muitos anos, num dos caminhos a caminho do alto da Penha, numa das casas de pedra que por lá existia (e por sinal, ainda existe), um Homem embalava uma criança nos seus braços.

Os berros, o choro, o desespero da pequena, seriam bem audíveis a quem na rua passasse. Aquele Homem, o Pai daquela criança em agonia, abraçava-a contra si, como se dessa forma pudesse, de algum modo, aliviar-lhe o sofrimento. Levava-a nos braços, até uma das janelas da casa, e olhava a cidade de Guimarães, já quase por completo adormecida.

Quantas vezes lhe terá ocorrido o pensamento de que, naquele instante, ou naqueles instantes que se repetiam dia após dia, só eles se quedavam despertos na cidade-raíz de Portugal. Assim era desde que aquela menina ao mundo decidira vir. Nem médicos, nem medicamentos. Nem rezas, nem mezinhas. Nem promessas. Nem cura. A criança estava entregue à dor. E aos braços do Pai.

Nunca o cansaço conseguira derrotá-lo, não sem que antes pudesse ser capaz de ver a menina a dormir. Eram esses, para ela, os raros momentos de acalmia, quando conseguia efectivamente adormecer. Quando a dor lhe concedia tréguas.

Não era assim naquela noite. O choro tornara-se mais incisivo e era possível, mais do que nunca, sentir-lhe o desespero. Os braços, aqueles braços, tantas e tantas vezes o único mundo que ela conhecera, seguravam-na com mais afinco, e o Homem, o Pai, no auge da também sua dor, decidiu ao embalo juntar uma canção.

Não me souberam dizer qual, mas eu gosto de pensar que seria alguma do Zeca. Primeiro, muito ao de leve, depois com mais firmeza, mas, ainda assim, suave. A melodia cobria-lhe os lábios.

A menina, aninhada nos braços que tão bem sabia, parou de chorar. E o Homem, logo nesse instante, percebeu. Adormecera, no sono dos que não voltam. E sem que o desespero que o dilacerava por dentro tivesse sequer tempo de dar mostras de si, enganou-o. Com o canto. Seguiu cantando para a sua menina. Embalando-a, como tantas outras vezes fizera, olhando a quase adormecida cidade de Guimarães.

 

 

DE COMO EXISTEM SÍTIOS ABSOLUTAMENTE INSUBSTITUÍVEIS NO CORAÇÃO DOS HOMENS

Recuo no tempo e vejo-me a atravessar a longa rua que era contígua a Ti. Eu era ainda um inocente menino, admirando-Te a imponência e ao mesmo tempo temendo-Te. Por essa altura, iam-me chegando aos ouvidos intimidantes relatos de situações que supostamente teriam tido lugar nos Teus corredores.

Até que um dia, por destino ou o que quer que tenha sido, Chamaste-me. E imediatamente as malditas histórias, quais sonhos maus, regressaram, cobrindo-me de indesejáveis receios.

Os inícios do que quer que fosse sempre foram, para mim, algo de difícil assimilação: Tu não foste diferente.

No entanto, Estendeste-me os Teus Etéreos Braços desde o princípio. Não o percebi de imediato. Não podia, agarrado que estava a ideias preconcebidas e, agora sei-o, mentirosas.

Foste Paciente e, qual Vigilante Pai, soubeste cativar-me. Poderia facilmente enumerar um sem número de pormenores que irremediavelmente a Ti me prenderam, mas irei ressalvar, sem menosprezo por todos os outros, apenas este: os mesmos corredores que alguém me havia assegurado serem sítios desaconselháveis à frequente e saudável convivência eram, na verdade, invisíveis veias por onde circulava um também invisível sangue: o Teu.

Não se via, sem dúvida, mas sentia-se, em cada frincha, pelo ar, em todo o Teu espaço, parecendo dotar de especial luminosidade aqueles que aí se encontravam, legando-lhes algo para o resto da vida e que seria (possivelmente) transmissível um dia mais tarde.

Uma Alma? Gosto de pensar que sim. Gosto também de imaginar uma Tua intangível Capa Negra Estendida sobre todos os que agora Te habitam ou em tempos habitaram, envolvendo-os nessa magia tão própria e, permite-me acrescentar, única.

Nicolino; Pregoeiro; Abraço; Amigo; Saudade; Amor; Casa. São tantos os nomes com que Te vejo. Não poucas vezes, não poucas mesmo, acho-me a mais anárquica de todas as almas que conheço e, no entanto, de livre vontade, sei-me Teu. E gosto que assim seja. Recuo no tempo até Ti e deixo-me por aí ficar. Ou talvez nunca tenha daí (realmente) saído.

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