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MADRINHA

PAULO CÉSAR GONÇALVES Dramaturgo

avo

por PAULO CÉSAR GONÇALVES

DramaturgoGandarela de Basto, Sexta-feira, Vinte e Três de Outubro de Dois Mil e Quinze

O quadro que se observa daquela janela com vista para o “Solar do Souto”, perto da Igreja de São Clemente, é melancólico: a tarde pinta o céu com as cores do Outono; as nuvens, aladas e acinzentadas donzelas, ameaçam irromper em choro a qualquer momento; o vento, esse cavaleiro invisível, assobia nos galhos das árvores que enfeitam o monte.

José Luís, alto, alvo e magro, dono dos olhos que contemplam aquela paisagem, é um jovem com oitenta e três voltas completas ao calendário das coisas mundanas.

 

“O mundo tem pressa. Eu, já não.”

 

Serenidade. Contemplação. Sabedoria. A vida é uma lenta, mas infalível, mestra.

 

Professor aposentado, viera viver com o seu único filho após o falecimento da esposa. Já lá iam cinco anos. Alexandre, o filho, morava em Gandarela de Basto. Curiosamente, habitava a casa que fôra pertença dos seus avós paternos, pais do seu pai, portanto. A casa passara, por herança, para José Luís, e este cedera-a ao filho, por altura do casamento deste, em Dois Mil e Dois.

 

Alexandre era arquitecto. Era parecido com o Pai, mas com bem menos cabelos brancos no penteado castanho claro. Sempre trabalhara em Celorico de Basto, apesar de ter nascido e crescido em Guimarães, terra da Mãe, Carolina, e de ter estudado em Coimbra. Foi lá que conheceu Teresa, a loira enfermeira que lhe enlaçou o coração. Ambos tinham um filho, o Jerónimo. Mas a prole prometia aumentar: Teresa estava de esperanças. Uma menina.

José Luís, que era filho das terras de Basto, fizera quase toda a sua vida no coração do Minho (e de Portugal). Em Guimarães, claro está. Voltara às origens por insistência do filho.

 

“Não tem jeito nenhum estar aí sozinho, Pai.”, repetiu-lhe, ao telefone, Alexandre. Até à resignação.

 

Não era totalmente verdade que estivesse sozinho. Os amigos do “Café Oscar”, e algumas visitas que costumava receber em sua casa, na Avenida General Humberto Delgado, os populares “Palheiros, faziam-lhe companhia, sobretudo à tarde. Felizmente, era autónomo, apesar de as forças já não serem as de outros tempos. O pior era a noite. À noite também tinha visitas: memórias que lhe beijavam a cara e sussurravam-lhe ao ouvido. E a mais funesta das visitas: a ausência da companheira de uma vida. O cancro levara, em braços, Carolina.

 

Durante dois meses resistiu à teimosia do filho com a sua própria teimosia: que não queria ir, que não queria dar trabalho, que o filho tinha a vida dele, etc. Mas lá cedeu.

 

Os primeiros tempos após a mudança foram complicados. Deixava-se estar por casa, em frente à televisão. Julgava-se inútil. Depois, começou a sair. Ocupava o tempo com passeios, a pé, pelas redondezas.

 

As coisas foram paulatinamente mudando. Com o tempo, estabeleceu uma ligação estreita com o neto.

 

Jerónimo, uma loira miniatura do pai, era um menino vivaço e curioso. O avô admirava-lhe a espontaneidade. Estudava com ele, brincava com ele (e com o cão da família, o “Sampaio”) e, o mais importante de tudo, dava-lhe real atenção. Os pais tinham uma vida complicada, fruto dos empregos. Coisas da modernidade. O avô viera, muito oportunamente, suprir a “familiar” falha.

 

Era José Luís quem ia buscar o neto à escola. Primeiro, durante o primeiro ciclo, todos os quatro anos. Agora, à EB 2,3 de Gandarela, há um mês. Jerónimo, com nove anos, estava já no quinto ano.

O relógio de pêndulo anuncia as quinze horas. José Luís, que estava mergulhado na paisagem que se estendia do lado de fora da janela, parece emergir para o momento.

É hora de ir buscar o Jerónimo. – murmura.

Veste o casaco que guardava as costas da sua cadeira e sai porta fora. Já no átrio da casa, ensaia duas festas no dorso do “Sampaio”. O cão, um “Golden Retriever” de dois anos, fica eufórico. A custo, desenvencilha-se da tolice desajeitada do canito e segue para o portão. Sai. Abre a porta do carro, ali estacionado na rua, e entra. Ajeita-se, coloca a chave na ignição, põe o cinto de segurança, liga a viatura e segue em direcção à escola.

 

A rádio, Renascença, oferece-lhe “Teus olhos castanhos”. Por momentos, faz dueto com Francisco José. E Carolina invade-lhe o pensamento.

 

Aquela estrada é calma. Monte e campos ladeiam-na até ao reboliço da estrada nacional. Daí até à escola é um piscar de olhos. Ou dois.
O Jerónimo já o aguardava, mas do lado de dentro do portão da escola. Mal viu o velho Mercedes do avô a chegar, correu na direcção do porteiro e mostrou-lhe o cartão. Estava já habituado aos novos ares (e costumes).

 

O avô sorri. O “metro e trinta de gente” sai pelo portão da escola e dirige-se para o carro. Abre a porta traseira, lança a mochila para cima dos estofos e, de seguida, entra. Traz na mão direita um pão com marmelada, parte do lanche que a mãe lhe arranjara. O avô preparava-se para falar, mas o pequenito interrompe-o:

– Já sei. Eu ponho o cinto.

Os olhos do avô sorriem.

Não era isso que eu ia dizer. Era mesmo para não sujares os estofos.

 

Não te preocupes. – responde-lhe o neto, fechando a porta.

 

Colocado o cinto e instalado o passageiro, o avô arranca. Inicia-se um diálogo:

– Então, como foi o dia de escola?, pergunta o avô, observando o neto através do espelho retrovisor.

– Assim-assim…, responde-lhe o menino, cheio de marmelada na boca.
– Assim-assim? O que é que aconteceu?

– Sim. Eu explico: estive a jogar futebol e falhei duas oportunidades para marcar golo.

O avô dá uma gargalhada. Acrescenta:

– Eu perguntei-te pela escola, não foi pelo recreio. Malandro…

– É igual.

Acabado o pão com marmelada, Jerónimo estica as pernas. Estão parados no trânsito. Os seus olhos, de um verde inquiridor, procuram os do avô. Por via do espelho retrovisor.

– Avô Zé…

– Diz, moço.

– Quando andavas na escola o teu avô também te ia buscar?
O avô surpreende-se com a questão do neto.

– Não, filhinho. O teu avô não conheceu os avós. Nenhum. Morreram muito cedo. Sabes, quando eu estudava era muito diferente. Pouca era a gente que estudava.

– Mas tu estudaste…, acrescenta o pequeno perspicaz.

– Estudei. Primeiro aqui, em Celorico, na Escola Primária, que era como se chamava antigamente ao primeiro ciclo. Depois, com pouco mais do que a tua idade, fui para Guimarães, para o Liceu, que naquele tempo era o equivalente à tua escola de agora.

– Foste para longe, vô. Quem é que te ia buscar à escola?

– Ninguém. Sabes, como te disse, pouca era a gente que estudava. Os meus pais, teus bisavós, fizeram muito sacrifício para que eu pudesse estudar. Em Guimarães, no Liceu, funcionava o Internato. O Internato foi o sítio onde eu fiquei a morar. Era onde eu dormia, todos os dias.

(O trânsito continua lento)

– Todos os dias? Longe da tua casa?

– Longe da minha casa. Só lá ia de longe a longe.

– E não tinhas saudades?

– Muitas. Mas tinha de ser.

– E amigos, tinhas?

– Muitos. Ainda tenho, mas poucos desse tempo. Ah, e tinha também a Madrinha.

– A tua Madrinha era de Guimarães?

– Não, de Fafe. Mas morava e trabalhava em Guimarães, perto do Liceu. A Madrinha era a minha família quando eu estudava lá.

– Ela era boa para ti?

– Era uma Santa. A maior de todas. E eu nunca lhe pude pagar tudo o que Ela fez por mim.

– Não tinhas dinheiro que chegasse, avô? Agora já deves ter…eu posso emprestar-te as moedas do meu porquinho-mealheiro.

O Avô, já emocionado, sorri com a inocência do menino.

– Meu querido, todo o dinheiro do mundo não chegaria para lhe pagar…

(O tráfego, finalmente, avança. Entram na estrada calma.)

 

– Avô Zé, como se chama a tua Madrinha?

 

– Ana. Ana Joaquina.

 

– Posso conhecer a tua Madrinha? Já deve ser muito velhinha…

O avô, com uma lágrima a pender do canto do olho esquerdo, respira fundo.

– Podes.

– Que bom! Vou dar-lhe um beijo e agradecer-lhe o que fez por ti…mas, ó avô Zé, ainda não me disseste o que ela fez por ti.

 

– Mas vou dizer. Quando te levar até Ela.

– E quando é que isso será?

– Nos teus anos. É uma promessa.
O pequeno sorri. O seu aniversário estava próximo: Um de Novembro.

Chegam à rua da sua casa. Quando o avô pára o carro, o neto livra-se do cinto e estica os braços para o avô, abraçando-o a partir do banco traseiro. Oferece-lhe um sentido beijo. Saem os dois do carro. José Luís abre o portão, entram, e, de imediato, surge Sampaio com a língua de fora. Jerónimo abraça-o e os dois ficam enrolados no chão. A chuva ameaça cair. Talvez não passe de ameaça. O avô dirige-se para o interior da casa, carregando a mochila do neto. E deixa ao amalucado duo um conselho:

– Jerónimo, Sampaio, juízo.

 

Passado um pouco, aparece Jerónimo à sala, cheio de baba na cara e pêlos de cão no casaco. O avô, que lá se encontrava, ri-se. Acrescenta:

– Olha que figura a tua. Vai já lavar essa cara e tirar esse casaco.
O pequeno faz o que o avô lhe recomendou e volta para junto dele.

– Tens trabalhos de casa?

– Só tenho de acabar de ler aquele livro do Peter Pan.
Diz-lhe o avô:

– Olha que sorte a tua. Vai lá buscá-lo. Vamos lê-lo os dois.

– Avô Zé, antes disso, só uma pergunta: vais mesmo levar-me à tua Madrinha?

O avô acenou afirmativamente com a cabeça, lembrando ao neto que “as promessas do vô Zé são sagradas”.

Jerónimo foi buscar o livro para que os dois o pudessem terminar de ler juntos. Antes de o fazerem, o avô contou ao neto que iria estar ausente durante a semana seguinte. Partiria hoje mesmo para Guimarães, ao fim da tarde, de modo a tratar de assuntos relacionados com a sua casa naquela cidade. Cinco anos estavam passados, era preciso fazer algo por aquela agora abandonada moradia. Assegurou-lhe que estaria de volta a Trinta e Um de Outubro, sábado, dia das Bruxas e véspera do seu aniversário. O pacto foi selado com um abraço.

Leram o livro. Jerónimo adormecera ao colo do avô. Este deitou-o no sofá e beijou-lhe a testa. Num espaço de minutos, chegara Teresa. José Luís despede-se da nora, partindo, de seguida, para Guimarães.

 

Chegado à Cidade Berço, José Luís instala-se em casa do seu amigo Francisco, onde permanecerá durante o período aprazado. Liga ao filho, dizendo que tudo correra sem sobressaltos.

(Os dias passam)

Gandarela de Basto, Sábado, Trinta e Um de Outubro de Dois Mil e Quinze

 

É tarde. Com medo da noite, e do caminho, José Luís decide não arriscar. Deixa o carro em Guimarães. É o amigo Francisco quem o leva a Gandarela de Basto. Avisa o filho, por telefone, para o facto.

Quando chega, já Jerónimo dorme.

– Esteve até há pouco acordado, à tua espera. Nem foi à noite das bruxas., diz-lhe Alexandre.

José Luís passa-lhe a mão pelo cabelo. O filho conta-lhe que o menino passara a semana ansioso pelo dia de aniversário, não pela festa em si, mas porque ia conhecer a “Madrinha do avô Zé”. O avô e o filho sorriem. Alexandre pergunta-lhe se precisa de algo. “De dormir”, responde-lhe.

Gandarela de Basto, Domingo, Um de Novembro de Dois Mil e Quinze

 

Oito da manhã. O pequeno Jerónimo já acordou, e com ele os pais. O avô já se encontra desperto há bastante tempo. Jerónimo aparece-lhe ao quarto.

– É hoje, avô.

– É, parece que sim. Anda dar-me um abraço.

O menino corre para os braços do avô.

– Parabéns!

– Já vamos, avô Zé? Ontem estive à tua espera.

– Daqui a pouco. Tive de deixar o carro em Guimarães, mas trago-o na volta. A minha vista já não é o que era.

 

– E como vamos?

– Vamos com os teus pais.

– Eles também vão ver a tua Madrinha?

– Lembras-te do que fazemos todos os anos, nos teus anos, desde há cinco anos?

– Uma festa?

– Isso também. Isso até fazemos há mais tempo. Mas também vamos visitar a avó Carolina ao cemitério.

– Pois é. Tens razão. E a tua Madrinha também vai visitá-la?

O avô sorriu. Alexandre e Teresa chamam pelos dois confidentes. Estão prontos. Partem para Guimarães.

 

Guimarães, Cemitério da Atouguia, Domingo, Um de Novembro de Dois Mil e Quinze

 

Nove da manhã. O dia de aniversário do Jerónimo é também Dia de Todos os Santos. O Cemitério da Atouguia regista grande afluência.

 

O petiz Jerónimo pede à mãe para que lhe compre um ramo, para que ele o possa oferecer à avó Carolina. No caminho, uma senhora oferece-lhe uma rosa. O avô pisca-lhe o olho. A família visita a campa da mãe, avó e sogra Carolina. Jerónimo deposita o ramo que pedira à Mãe e beija o retrato da avó. A família passa um bom bocado junto ao túmulo, em silêncio. Alexandre e Teresa anunciam que vão embora. José Luís pede-lhes para que deixem Jerónimo com ele. Eles seguirão, dali a pouco, no seu carro até Gandarela. É então que Jerónimo, impaciente, dirige uma pergunta ao avô:

– Avô, a Madrinha não vem?

O avô olha-o. Põe o braço sobre o ombro do menino. Diz-lhe:

– É a hora. Vamos.

E dá-lhe a mão.

Atravessam o cemitério, em largura, do lado direito para o lado esquerdo. Passam junto aos túmulos dos Bombeiros Voluntários de Guimarães. Ali bem perto, o avô detém-se junto a uma campa com várias placas. Puxa Jerónimo para junto de si. Coloca-lhe as mãos nos ombros. O menino olha-o. José Luís começa a falar. É visível que está comovido.

– Meu pequeno príncipe, o que me ligou à Madrinha foi a facilidade com que ela conseguiu cativar-me. Essa facilidade tocava a sensibilidade de todos nós, estudantes. Desses estudantes, muitos eram aqueles que, como eu, eram de longe. Não tínhamos o acompanhamento das nossas famílias nem o aconchego dos nossos lares. Era ela a nossa família em Guimarães. O nosso ombro amigo. O nosso pão. Muitas, muitas vezes.

 

O menino ia interrompê-lo com uma questão, mas o avô fez-lhe sinal para que não o fizesse. Continuando:

 

– A loja e casa da Madrinha eram junto ao Liceu. Era na loja que nos juntávamos, no intervalo das aulas. A conversar, a fazer asneiras ou a cantar. E quando alguém queria faltar às aulas, e não eram tão poucas as vezes em que isso sucedia, Ela mandava-o estudar. E quando as coisas corriam mal, íamos ter com Ela. Ela intercedia por nós junto dos professores. Eles respeitavam-na. Ela protegia-nos. Ela será, para todo o sempre, a mais extraordinária história de solidariedade humana que eu conheço. E foi na sua lojinha, simples e escura, que eu conheci, há muitos anos, a tua avó Carolina. Vês, como lhe poderia eu pagar?

O jovem Jerónimo leu uma das placas (já gasta e sem a letra “h”) daquela campa:

“ A
ANA DE MAGALHÃES
(Sr.a.Aninhas)
omenagem As.Ant.Estudantes Liceu”

Percebe de imediato, após as palavras do avô, de quem se trata. “Então ela já morreu”, deixa escapar. E abraça o avô, que chora. As pessoas que passam observam-nos, com admiração.

O avô pede para que sigam caminho. Antes de o fazerem, o pequeno pousa, sobre a campa da Madrinha, a rosa que a senhora lhe tinha oferecido.
Os dois, de mãos dadas, seguem por um dos caminhos em direcção à saída. Perto do muro que cerca o perímetro do cemitério, junto a um magnífico túmulo de pedra, está um grupo de dez rapazes vestidos de negro. Todos usam capas. Também negras. Um deles segura um estandarte verde. José Luís reconhece o túmulo: é o do Padre Gaspar Roriz. E reconhece, também, aquela “comitiva”.

– Quem são, avô?, pergunta-lhe Jerónimo.

O avô, que acabara de enxugar as lágrimas e exibia agora um sorriso na cara, responde-lhe:

– São Nicolinos, meu menino. Como eu.

– Quem são os Nicolinos?

– É uma história longa, mas eu conto-ta. Vou demorar dias e dias. Estás preparado?

– SIM!

Este texto é uma homenagem à memória da Senhora Aninhas, Eterna Madrinha dos Estudantes. É também uma homenagem ao Padre Gaspar Roriz, no 150º aniversário do seu nascimento, e ao Grande Jerónimo Sampaio.

NOTA*: A Comissão de Festas Nicolinas faz, no dia Um de Novembro, com a “Romagem da Saudade”, a sua primeira aparição formal. É a apresentação à cidade.

No cemitério da Atouguia são homenageadas todas as gerações de Nicolinos falecidos.
*texto da AAELG/Velhos Nicolinos, em www.nicolinos.pt

Por expresso pedido do autor, este texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico da Língua Portuguesa.

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