INDIGENTES POR VOCAÇÃO

por ESSER JORGE SILVA Sociólogo A convite de uma amiga, […]

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por ESSER JORGE SILVA
Sociólogo

A convite de uma amiga, professora de uma escola secundária, acedi, recentemente, a fazer uma palestra aos alunos do ensino técnico profissional, atualmente denominado “cursos vocacionais”. Apesar de ter levado o convite a sério e feito o trabalho de casa, a tarefa foi, de todo em todo, uma experiência profundamente negativa. De repente, a boa vontade – minha, dos professores e da direção da escola – em organizar um seminário diferente para alunos com um percurso de aprendizagem orientado para a prática, transformara-se num completo circo de indigentes. O barulho, as conversas entre dois e três em voz alta, a interrupção permanente a despropósito, a atitude descontraída de café, o ar blasé, a resposta irrefletida em tom mal criado, a insensibilidade perante os professores, a má educação perante o convidado da sua escola, o desdém, a altivez ignorante, a ostensiva desconsideração, todo o menosprezo; se não intelectual, pelo menos civilizacional, revelava, ali, naquele salão nobre da escola, os traços de uma categoria de alunos que, afirma-se amiúde, será o nosso futuro.

O cenário apresentou-se ali numa inversão de pressupostos. A ignorância dominava o espaço. Qualquer frase articulada era imediatamente derrotada por grunhidos. Rapazes e raparigas em idades acima dos 16 anos mostravam uma categoria especial de jovens. É preciso que se diga que não se trata de alunos na ordem. Esses existem e, com mais ou menos dificuldade, é possível trabalhar com eles. Neste caso estamos perante alunos extraordinários. Negativamente extraordinários. Alunos impensáveis, como seres sociais, no século XXI. Contei o sucedido a uma outra colega, também professora de “cursos vocacionais”. A colega pôs-me com mais conhecimento: alguns alunos apresentam-se com haxixe na sacola mas, quando o professor quer afirmar a sua autoridade na sala, eles apresentam o direito, “o meu direito professora!” a que se não mexa no seu saco. E, posto perante este cenário underground, só resta chamar a polícia. Que, chamada, os coloca no divã dos inimputáveis.

Os pais destas criaturas dividem-se entre os que se deixam dominar pela vergonha, e desaparecem, e os que nada querem saber e nunca aparecem. São eles os encarregados de educação dos indigentes por vocação. Conheci-os em trabalho de campo quando recolhia dados para escrever “Fabricados na Fábrica”. E, se a escassez nas suas histórias de vida quase levam à comiseração, a história que deram aos filhos coloca-os no domínio da leviandade. Aliás, é assaz revelador o espírito passivo dos pais que nunca se deram ao trabalho de remediar as suas letras. Que nunca quebraram a estrutura mental que lhes foi imposta para desgostarem da escola. Hoje, o seu entendimento do ensino é de um local onde se depositam os filhos. Por lá existem uns tipos que têm a obrigação, “a obrigação, ouviu!” de ensinar os seus filhos. Nem se dão conta que os filhos chegam à escola retardados no mais básico dos ensinamentos: saber estar, saber escutar, saber dividir o espaço de aprendizagem do espaço de brincadeira, saber reconhecer a autoridade. Não conseguem o mais básico das pessoas civilizadas: estar sentada numa cadeira, não por acaso, construída segundo as dobras do corpo.

Claro que a toda esta tragédia tem tido a grande ajuda das políticas educativas engendradas pelo Estado. O princípio de bondade que as Ciências da Educação colocam no aluno só têm cabimento em teorias do “dever ser”. Mas aí era preciso que o aluno aparecesse em “estado tábua rasa”, limpinho e sem “habitus” familiar. Depois da família “puxar para baixo” durante séculos, ensinar a dizer “eu não gosto de aprender”, desconhecer o que “pensar quer dizer”, o que resta à Escola fazer? Como enfrenta um professor esta casta de alunos? Que tipo de estratégias e recursos comunicacionais resultam?

Talvez seja tempo de se enfrentar a realidade e começar-se a pensar a partir dela. Um bom começo era não importarmos formas. Ir à Alemanha buscar o modelo assente no “beruf” não deixa perceber que, em alemão, a expressão designa, em simultâneo, vocação e profissão. Mas, em português, vocação é destino mandado pelo acaso. E assim, talvez até faça sentido continuar a produção de indigentes por vocação.

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