O PACIENTE PORTUGUÊS
ESSER JORGE SILVA Sociólogo
por ESSER JORGE SILVA
Sociólogo
O paciente dá expressão à paciência. Fica-se paciente assim, sem se querer, de um momento para o outro, num estalar de dedos. A partir daí domina-o a espera como imperativo. Porque, ao paciente, não resta outra solução senão a paciência, sua melhor propriedade. Acometido a um quarto hospital – a que os velhos chamam, entre o sério e a glosa, “o hotel” – resta ao paciente acalmar o seu interior e fazer bem o que todo o paciente faz: aguardar que alguém se lhe dirija a palavra. Na organização hospitalar, o paciente, sendo o objeto, é também um “intruso”. Enquanto “intruso”, ele é uma espécie de estrangeiro que estando presente, logo deixa de estar por não ser da “terra” – entendendo-se aqui a expressão terra como o espaço hospitalar. Como “objeto” ele revela-se o ponto de utilidade de toda a comunidade hospitalar, transportando assim a noção económica que lhe dá utilidade.
É grande o tempo em que o paciente está entregue a si e é curto o tempo em que contacta com os membros da organização e, estes dois espaços temporais configuram, de certa forma, os momentos em que se está perante o “intruso” e os momentos em que se está perante o “objeto”. O tempo exclusivo do “intruso” é o tempo de “esquecimento organizacional”. O intruso é situado e confinado a um espaço, o seu quarto, aí residindo a maior parte do tempo entregue a si, tempo que pode ser colorido com as suas visitas. O tempo do “objeto” revela-se na presença da organização através do contacto com os seus profissionais. É neste último espaço que o cliente na sua condição total – estrangeiro, intruso e objeto – consegue encontrar os sinais de que a organização hospitalar se dá. Para além das cores das batas – e do distinto e omnipresente estetoscópio médico, do carrinho de utensílios de enfermagem – há, no tempo gasto pelos profissionais, na forma de abordar e expressar, traços que revelam os recortes fronteiriços de classes e estatutos.
Na dialética hospitalar, o médico tem um lugar cimeiro logo seguido do enfermeiro. Mas, na relação com o paciente, a expressão do lugar cimeiro é dos auxiliares. São eles quem mais interagem com o paciente, no caso “elas”, na medida em que estamos perante um território profissional maioritário de mulheres. Tudo é motivo para assunto: “desculpe mas não lhe vou chamar por esse nome estranho, vou-lhe chamar senhor Silva”. É o grupo que mais entra no quarto e, não tanto pela frequência, é o que mais desbloqueia conversas, sendo os temas personalizados – “então de onde é?”, “O que faz?”, “ai sôr Elso ou… isso, é isso não é?, a vida está difícil!”. Na hierarquia das auxiliares, a auxiliar da limpeza opta por temas trágicos – “… e depois de ter falado com ele, morreu no dia seguinte; tenho tanta pena que nunca mais fui a mesma” – e, quanto mais o ponto de incidência do trabalho se desloca do chão, mais a temática é animosa – “veja sôr Jorge, eu não sou burra, gosto mesmo de aprender; se me explicam, aprendo…”.
Há um toque de concentração na tarefa realizada pelo enfermeiro como se ali residisse toda a sua existência profissional. Não escapa ao paciente o facto de que todas as horas são cumpridas com um rigor ritual: “são vinte horas sôr Jorge, temos antibiótico”. Antes fora o medir da tensão e, antes ainda, o analgésico. O enfermeiro – oitenta por cento das vezes, a enfermeira – age entre silêncios e cuidados medidos, alguns a violar o corpo – “agora vou picá-lo”- e outros a promover a animação do espírito do paciente com “quatro litros de branco”, água mais exatamente. É ele quem mais executa atos de “cura” ocupando a sua agenda com infalíveis tarefas. As suas falas versam entre o espreitar dos sinais, a pergunta profissionalmente orientada e a bondade da coisa séria feita a brincar.
O médico não titubeia no discurso. Não verbaliza hipóteses, é altamente profissional no gasto do seu tempo. Nada de conversa fiada. Na relação com o paciente apenas inscreve o absolutamente necessário ao problema que se lhe apresenta. Perfaz a sua missão num recorte limitado exclusivamente à solução da doença. No modo de agir médico forma-se um ar compenetrado de quem tem um interior cheio de fichas de sabedoria. Para o paciente ele escolhe uma ficha. A sua ficha! Fá-lo com um ar introspetivo como quem remexe num interior cheio de avenidas de sabedoria. Quando fala é como se tivesse acabado de ler a ficha adequada ao problema do paciente. Primeiro debita-a na linguística fechada da profissão e, certificando da incompreensão por iliteracia, expõe comummente, dando-se a reivindicação tácita não só do estatuto mas também do poder da sua palavra.
No tempo em que ocupa o espaço, o paciente “objeto” realiza profissionalmente o médico. Perante o enfermeiro dá-se uma duplicidade do paciente: nas artes deste profissional cabe o paciente “objeto”, restando todavia, no espaço atos de descontração que fazem emergir o paciente “intruso”. Neste entrecruzar de contrários são os auxiliares que mais se servem do paciente “intruso”. Animam-no com as estórias que ele traz e que, simultaneamente se transformam em novidade no espaço hospitalar. Na métrica do uso da palavra – o dom humano por excelência- não há dúvidas que os auxiliares se predispõem mais para a melhoria da saúde mental do paciente do que todas as palavras embrulhadas no discurso técnico. Fica a pergunta: reduzir-se-á a sensibilidade humana com a subida de estatuto?
Nota – No dia 22 de julho, Miguel Albuquerque, chefe do Governo Regional da Madeira foi submetido a uma intervenção cirúrgica para extração de um cálculo renal que lhe fora diagnosticado dois dias antes. No mesmo dia, o autor deste texto foi submetido a uma segunda intervenção cirúrgica para extração da mesma patologia. Com uma diferença: a sua primeira entrada na urgência de um hospital com o seu problema deu-se a 22 de dezembro de 2014. Foram 2 dias para operar Albuquerque e 210 dias para operar o escrevedor, cidadão comum. Por que razão, perante o mesmo quadro, age o hospital Nélio Mendonça no Funchal de forma diferente do Hospital Senhora da Oliveira em Guimarães? Será da organização ou será do estatuto do cálculo?
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