AS CÂMARAS E OS SILÊNCIOS QUE ME OBSERVAM
por Mário Moreira As câmaras e os silêncios que me observam […]

por Mário Moreira
As câmaras e os silêncios que me observam
Trabalho numa cozinha com câmaras. Já trabalhei em outras cozinhas com semelhante vigilância. Porém, não são as câmaras ocultas que me incomodam. Nem sequer as humanas. Estou concentrado. De consciência tranquila, de boas práticas, de não lesa ninguém.
– É assim tão cruel? Pergunta, por trás de mim, Olga, mulher do Major, propietários do restaurante. Nem pestanejei. – É assim tão cruel? Volta a perguntar-me. Viro-me, ligeiramente. Está encostada a uma bancada de trabalho, numa postura pouco comum. Decote escarrapachado, saia curta bem justa, pernas ao léu, lábios de um sol vermelho escaldadante…
Fico perturbado não pela sua presença, mas pela sua pose, perturbado até ao desejo.
– Os lavagantes não sentem dor, respondo! Têm morte imediata. Conhece o episódio do tubarão com as tripas de fora que as confundiu com um petisco?
O fascínio da cozinha, excitava-a. Contorcia-se toda de lado para lado, como um camarão lambuzado em azeite e alho na frigideira.
– Eu sei que que eles gritam quando estão a morrer dentro de água, como eu fora dela… Olga, pega um lavagante, parte-lhe uma pinça que a entroduz no anús e num ato imediato retira-a. Uma cor castanha esverdeada sai do pobre bicho. Atira-o para cima da bancada, a esteirar-se com dores…
– Afinal quem é cruel? Está aqui para se certificar que não enveneno o Major? Se lhe quisesse fazer mal, não estripava os bichos, não os deixava cozinhar completamente, não me assegurava da devida confeção dos alimentos. Há um silêncio peturbante. Sinto um arrepio na espinha…
Num impulso mecânico, Olga, senta-se na bancada. Acontece um cenário obsceno. Uma posição primitiva, completamente descarnada, pornográfica. Houvem-se passos, cruza as perna. É o Major.
– Que se passa aqui? Observa o cenário “meticulosamente” sem respostas. Bate em retirada num ato militar banana.
– Normalmente, espero que morram, só depois os estripo, nunca retiro a tripa a um lavagante vivo. Há uma especie de lavagante que tem um grão de areia no cérebro que os fazem gritar em situações de desespero…
Viro-me, não encontro, Olga. Consegui resistir!
Surge-me a ideia de uma cilada… Não cedo a armadilhas!
“Lavagantes grelhados”
Descongelo os lavagantes. Faço-lhes uma incisão no comprimento. Retiro-lhes a tripa, parto-lhes as patas. Lavo-os. Guardo-os. Levo os lavagantes, untados com azeite, a uma grelha. Tempero-os com sal, alhos picados, manteiga, piripiri e sumo de limão.Tempero de pimenta e oregãos. Envolvo-os, levo-os ao forno e deix-os ferver um pouco. Retifico nos temperos.
Bom apetite.
Um abraço gastronómico.
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