OS VENCIDOS DA VIDA

ESSER JORGE SILVA Sociólogo

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por ESSER JORGE SILVA
Sociólogo

Foi-se um ano. Vem um ano. Nesta passagem do velho para o novo o tempo devia ser de projeções do futuro. De enunciar projetos. Formular planos. Confessar desejos. Pensara pois em escrever sobre as coisas simples da vida como a amizade, o amor, a família. Trazia na mente expressões sobre prazeres simples como passear pela cidade com os filhos, degustar um vinho com amigos, jantar lentamente, conversar sobre trivialidades, olhar demoradamente para a mulher que se ama, escrever o melhor parágrafo, compor com precisão, deixar fluir a poesia. Mas a história do Banif e a imputação da sua falência a todos, com uma fatia a pagar por mim -por si, por nós- despertou-me o espírito para a nossa realidade.

Triste fado este, repetida e sofridamente declamado, quase sempre a roçar a desgraça e cujo fim não conseguimos vislumbrar. Cada vez mais Portugal assemelha-se a uma tragédia coletiva. Mergulhados na vidinha somos coletivamente uns vencidos da vida. A nossa vida é cada vez mais sacudida, dobrada, retalhada, amarfalhada, revirada e tirada de nós. Só aparentemente decidimos o nosso destino porque, em boa verdade, não só nos resta muito pouco dele como sobra-nos pouca margem pessoal de decisão. Vamos existindo entre simulacros e simulações, entre a aparência e a parecença. O nosso futuro está pintado de negro muito escuro. Ninguém o vislumbra, ninguém o imagina, ninguém o planeia, mas todos acreditam nele com o fervor dos inocentes. A crença, essa confiança cega no ineludível, essa fé inquebrantada numa proteção superior comanda, dando-se a substituição da vontade coletiva pela submissão à ordem geral.

O dito “os portugueses viveram acima das suas possibilidades” figurará como uma das frases mais infelizes jamais proferida em Portugal. Tratou-se da voz da ordem. A facilidade como esta afirmação foi assumida como uma verdade em si tornou a boutade no prodígio-síntese do aniquilamento do espírito. A aceitação culposa da crise pelo seu povo, amorfanhando-se perante a austera sentença pela ousadia de querer viver condignamente, constitui um dos fenómenos mais extraordinários da vida portuguesa, quiçá a merecer uma atenção investigadora, o que muito provavelmente, explicará a génese relacional da generalidade dos portugueses com a autoridade do Estado. Carregar com a culpa de algo tão drástico como a falência de um país deve ser demolidor. Esta culpa imobilizou vontades e deu lastro a uma existência dormente, uma quase desistência. A liquidação da energia vital daí decorrente representou, provavelmente, o maior desvalor alguma vez introduzido num país.

Por minha culpa, minha tão grande culpa! traduz-se no assumir da ilegitimidade da existência sã. Evoca em simultâneo a crença como doença permanente. São estas duas fortes abstrações coladas em espíritos tornados fracos, milenarmente trabalhados e reproduzidos de gerações em gerações como forma de existir, que explicam muito do nosso destino empobrecido. A tendência para a espera do ser providencial ou para o apelo ao salvador, explicam a posição superior como os gestores políticos se colocam em relação ao povo. Explica também como as elites portuguesas compreendem bem com quem se aliar para dominarem a economia e a finança, fazendo circular entre si ora elementos do capital para a política, ora da política para a finança num limbo onde só se fala de milhões. E explica também como a justiça se tornou num joguete, um campo submetido ao conjunto decorrente desta circulação entre poder político e poder económico.

Até ao final de 2015 tinham sido imputados aos contribuintes 13 mil milhões de euros pelas perdas financeiras dos bancos. É quase certo que em 2016 iremos acorrer a um outro banco. Nessa altura iremos acudir a cerca de 20% da riqueza que produzimos num ano. Quem foi responsabilizado por essas perdas? Ninguém! Para onde foi o que se perdeu? Foi antecipadamente distribuído aos acionistas em forma de lucro quando na verdade se tratava da devolução de capital por troca com um balão de ar nos balanços denominado juros de empréstimos para a construção civil. Desaparecida a possibilidade de os cobrar, esses malfadados juros foram depois entregues à responsabilidade dos contribuintes. A um qualquer cidadão investigar-se-ia a vida financeira e fiscal dos últimos dez anos mas à elite que se alambazou de falaciosos lucros faz-se de conta que já nada pode ser revertido. É a prescrição por preguiça.

Simula-se a busca da responsabilidade entre andanças jurídicas, divagações políticas e falaciosas justificações técnico-económicas. Mas ninguém devolve o dinheiro que falta nos buracos tardiamente descobertos. E ninguém vai preso! Segundo o linguajar as perdas foram “impostas pelo mercado” e por isso há que distribuí-las irmãmente pela turba de desgraçados que vivem do trabalho. A responsabilização devia também ocorrer na esfera do Estado cujos gestores políticos conseguiram elevar a nossa dívida pública bruta de 159 mil milhões em 2010 para os previstos 215 mil milhões de euros em 2015. Uma dívida que, para ser paga, teríamos de trabalhar durante 15 meses, sem nada gastarmos.

Em todas as sociedades avançadas as elites têm um papel determinante. Seja a elite da finança, da justiça, da política ou das profissões mais reconhecidas. Não só funcionam como imagem como determinam muitos do comportamentos. Seja de que campo for, as elites afirmam-se por serem elas a indicar o caminho. Constituem-se como modelos. São o exemplo a seguir e que, em muitas circunstâncias, dão expressão a uma certa plasticidade no vislumbrar das formas necessárias da ascensão social. Mas se aqueles, os que expressam a sua função no vértice da pirâmide, contribuem negativamente para a formação da malha mental do que é entendido por sucesso, é seguro que se dará uma reprodução dos comportamentos negativos na escala social subsequente. Por isso, se nos detivermos um pouco nesta inenarrável tragédia, facilmente concluímos que temos uma elite mal formada, egoísta, exclusivamente concentrada na acumulação de capital, avessa à redistribuição, desinteressada na competência e atravessada pela corrupção moral. Esta é a elite da nossa tragédia. É ela que nos torna nuns vencidos da vida.

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